Elas não são exatamente novatas. Cecília Atán já trabalhou até com astros de Hollywood – foi assistente de direção de Visões (2003), drama com Antonio Banderas e Emma Thompson filmado na Argentina – e tem mais de uma dezena de títulos no currículo, entre curtas, séries para a televisão e outros projetos. Valeria Pivato, por sua vez, tem uma forte ligação com Ricardo Darín: foi diretora de elenco de O Mesmo Amor, A Mesma Chuva (1999), assistente de direção de O Filho da Noiva (2001), e colaboradora dos roteiros de Clube da Lua (2004) e O Segredo dos seus Olhos (2009) – este último, aliás, vencedor do Oscar. Após tanto tempo atuando nos bastidores, as duas resolveram unir forças e estrearam como realizadoras com o drama A Noiva do Deserto (2017), que teve sua primeira exibição mundial diretamente no Festival de Cannes, e após ser exibido no Brasil durante a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, entrou finalmente no circuito nacional em abril de 2018. Aproveitando essa oportunidade, nós entramos em contato com as cineastas, e tivemos uma longa – e esclarecedora – conversa via Skype. Confira!
A Noiva de Deserto é uma co-produção entre Argentina e Chile. Como surgiu essa parceria?
Cecília Atán: Nós começamos a escrever o roteiro em 2012. Foi quando tivemos as primeiras ideias, e íamos anotando livremente sobre o que queríamos filmar. Em poucos meses, tínhamos definido a personagem da Teresa, a protagonista. Com isso em mente, começamos a pensar nas atrizes que poderiam interpretá-la, e nos questionamos: “por que não abrir a fronteira e buscar intérpretes em outros países?”. Não queríamos ficar restritas à Argentina, e, sim, buscar talentos em toda a América Latina. Foi neste momento que a Paulina Garcia surgiu no nosso horizonte. Ela havia recém ganho o Urso de Prata de Melhor Atriz no Festival de Berlim, por Gloria (2013). Por mais que estivesse em alta, isso não nos intimidou, e a contatamos por e-mail, enviando o roteiro e um convite para ser a nossa protagonista. O que nos surpreendeu foi que respondeu logo em seguida, afirmando ter lido o material, se encantado pela personagem e aceitando nosso chamado.
Mas foi tudo muito rápido, então?
Valeria Pivato: O convite foi feito no primeiro semestre de 2013, logo no primeiro contato que tivemos com ela. Mas foi apenas uma declaração de interesses mútuos, nós dizendo que queríamos trabalhar com ela, e ela afirmando o mesmo. Mas levou muito tempo até que, enfim, conseguíssemos começar as filmagens. A Noiva do Deserto, afinal, é o nosso primeiro filme, somos estreantes. E nunca é fácil para quem está começando. Mas tê-la ao nosso lado foi determinante, pois foi a partir da resposta da Paulina é que fomos atrás de uma co-produção chilena.
A Paulina Garcia sempre foi a primeira opção de vocês?
CA: Sim, totalmente. A primeira e a única. Como disse, ela surgiu logo no começo do processo, e como rapidamente acenou com interesse, nem chegamos a cogitar outras atrizes.
Mas por que não trabalhar com uma atriz argentina? Consigo ver Norma Aleandro fazendo a Teresa, por exemplo.
CA: Mas a Norma Aleandro é muito mais cara! (risos) Mas, sem brincadeira, Norma Aleandro é incrível, mas há uma diferença grande de idade entre as duas, são mais de vinte anos que as separam. E também tinha essa vontade de abrir as fronteiras, de nos comunicar com outros públicos. Estávamos buscando alguém muito específico, com um forte potencial dramático, mas sem exageros. Alguém que conseguisse comunicar muito, porém com pouco. Não sei se estou sendo clara, mas era um perfil que Paulina se encaixava perfeitamente. Não víamos nenhuma atriz argentina que conseguisse entregar tudo isso que enxergávamos em Paulina. Tanto internamente como também em suas expressões. Tinha ainda a jornada da personagem, e tudo que ela muda durante o filme, o quanto vai se transformando. A Teresa do final é muito diferente daquela do começo, e precisava ser uma atriz capaz de alcançar esses dois registros. É muito difícil encontrar alguém, da idade da Paulina, que tenha toda essa expressividade. O esforço dela é muito sutil. Está tudo no rosto, o filme não oferece outros artifícios em que possa se apoiar. Era preciso alguém capaz de sorrir pelos olhos, e, com isso, se iluminar.
Estamos falando de uma economia de atuação, e essa mesma intenção se percebe por todo o filme: são dois atores, quase não há cenas internas – afinal, estamos num deserto – e até a duração – o filme tem apenas 78 minutos. Era uma exigência criativa buscar esse mínimo?
CA: Sim, podemos dizer que sim. Era algo que buscamos. Aplicamos isso a tudo: às atuações, ao registro da câmera. Na realidade, o que nos interessa, inclusive como espectadoras, é um cinema que se comunique pela síntese. Há uma riqueza muito grande nas pequenas coisas, nos detalhes que muitas vezes passam desapercebidos. Então, até a quantidade de planos, a maneira que editamos, tudo havia um porquê por trás. Era para evitar estes excessos. Ao invés de irmos colocando, fazíamos o contrário, tirando tudo que percebíamos ser desnecessário. Esse é o tipo de cinema que nos emociona.
Muito tem se falado recentemente sobre a presença de mulheres por trás das câmeras. E vocês são duas. Como se deu essa parceria?
VP: Eu e Cecília nos conhecemos há anos, desde o tempo da faculdade. Sempre tivemos uma sintonia muito forte, uma afinidade a respeito do tipo de cinema que gostamos e pretendemos fazer. Quando começamos a pensar em fazer nosso primeiro filme, logo nos perguntamos: “por que não fazemos juntas?” Nós duas desejávamos estrear como diretoras, e seria até um desafio extra trabalharmos em conjunto. Tecnicamente, havia muitas teorias sobre o que podíamos ou não dividir, no que diz respeito às responsabilidades, mas, em geral, fazíamos tudo juntas. Era o nosso primeiro filme, queríamos aprender como fazer tudo, entende? Tínhamos muita vontade de fazer de tudo um pouco, nós duas. Até tentamos separar as coisas, mas, depois de muito conversar, descobrimos que o melhor era atuarmos em conjunto, como uma dupla, mesmo. Era o mais lógico. Só a escrita do roteiro, por exemplo, nos tomou cinco anos! Ou seja, tivemos muito tempo para nos adaptar uma com a outra. Até que, quando chegamos ao set de filmagens, que, à princípio, seria o momento mais crítico, estávamos totalmente alinhadas.
CA: Isso não quer dizer, no entanto, que a maneira que descobrimos de trabalhar juntas possa servir como norma para qualquer outra dupla (risos). Funcionou para nós, e foi ótimo, mas cada caso funciona de um jeito. Havia momentos em que dividíamos as tarefas, uma cuidava dos atores, outra da parte técnica, mas em geral tudo era feito em conjunto. Como eram apenas dois atores na maior parte do filme, Paulina e o Claudio Rissi, também nos dividíamos assim: uma falava com ela, a outra falava com ele, e assim tudo andava mais rápido. Encontramos uma maneira de potencializar nossas qualidades, em que nada era fixo, tudo podia ser ajustado a qualquer momento. E, claro, fomos descobrindo à medida em que íamos fazendo.
Cecilia, você também é atriz, não? Chegaste a trabalhar com Ricardo Darín em Tese sobre um Homicídio (2013). Como foi essa experiência?
CA: Nossa, você pesquisou, hein? (risos) Mas, sim, nós duas trabalhamos com Darín, aliás. Eu fiz esse filme, e a Valeria participou de alguns outros, com outras funções. Durante muito tempo atuamos nos bastidores, em produções diversas, pois tudo era aprendizado, e queríamos dominar bem a parte técnica da realização de um filme. Agora, sobre atuação, com certeza é algo que me encanta. Só que A Noiva do Deserto surgiu com tanta força na minha vida que tive que deixar essa ocupação um pouco de lado. Quem sabe no futuro não volte a me arriscar?
Após passar por uma experiência como essa, é mais fácil dirigir atores?
CA: Não necessariamente. Talvez ajude mais na escrita de um roteiro, em como organizar os diálogos, do que para dirigir atores. Nos ajuda a entender melhor como passar pelo corpo aquilo que foi escrito, como se tornar aquele personagem, fazer dele uma figura real, e não apenas algo que estava ali no papel. Penso que o que nos ajudou a dirigir atores foram todas as experiências que tivemos antes, em conjunto. Cada diretor com quem trabalhamos, cada um com seu estilo muito próprio, nos ensinou muito. Descobrir a personalidade de cada ator, donos de um perfis distintos, é um trabalho incrível. Esse é o nosso maior esforço, no final das contas: entender como cada um funciona e entrar em sintonia com ele.
Valeria, você foi assistente de direção de Leonera (2008), no qual atua Rodrigo Santoro. Como foi essa experiência? E, na sua opinião, por que não há um intercâmbio maior entre brasileiros e argentinos no cinema? Seria somente uma questão da língua?
VP: No caso particular do Leonera, isso já estava estipulado no roteiro: precisava ter um ator brasileiro. Foi pensado desde o princípio desta forma. Porém, apesar de sermos países vizinhos, a barreira do idioma é muito forte, principalmente para nós. E no cinema isso fica ainda mais evidente. É muito difícil incorporar um ator com um registro tão próprio, como o que percebemos no Brasil. Então, para que ocorra essa troca, tem que haver uma desculpa na trama. Ou seja, um argentino que viva no Brasil, ou um brasileiro que viva na Argentina. Tem que ser uma história que permita esse tipo de ajuste e que justifique uma co-produção. Foi o que aconteceu com o Rodrigo. Ele foi convidado para participar deste filme, e, mesmo assim, foram poucos dias de filmagens para ele, pois era um personagem secundário. É uma pena que tenha que ser assim, pois não tivemos a oportunidade de nos conhecer melhor. A passagem dele foi muito rápida. E, num âmbito maior, a lástima é imensa. Como pode, dois países tão próximos, porém com cinematografias tão distantes? E o mesmo se dá com o circuito comercial, são raros os filmes brasileiros que chegam a entrar em cartaz na Argentina. E imagino que o mesmo aconteça aí no Brasil.
CA: Por isso as co-produções são tão necessárias, pois é uma ferramenta extra para aumentar o público do teu filme. Dessa forma, a gente consegue que ele vá mais longe, e que se comunique com mais pessoas. E isso é tudo que buscamos, que nossos filmes sejam vistos.
Vocês chegaram a assistir a um filme chamado Pela Janela (2017), uma co-produção entre Brasil e Argentina que tem uma trama muito similar ao Noiva do Deserto. São dois filmes praticamente irmãos.
VP: Que incrível! Não chegamos a assistir, mas pelo que você está dizendo, a sintonia é geral. Estamos todas conectadas com as mesmas misérias humanas.
A Noiva do Deserto estreou mundialmente no Festival de Cannes, em maio de 2017, e já passou pelos cinemas argentinos. Como vocês perceberam a recepção que o filme teve durante essa trajetória?
VP: Basicamente, conseguimos acompanhar as repercussões após as passagens pelos festivais, pois foi quando nos conectamos com públicos de outros países. E foi muito satisfatória cada uma dessas exibições. O que mais nos surpreendeu foi logo o começo – é claro que não aspirávamos estrear no Festival de Cannes! Para se ter uma ideia, terminamos as filmagens em dezembro de 2016, e tivemos muito pouco tempo para montar o filme. Nossa motivação era ter o primeiro corte em março do ano seguinte, para irmos para o Festival de Toulouse, voltado ao cinema em construção. Mas tudo começou a acontecer muito rápido, Cannes acabou nos chamando, logo estávamos ganhando os primeiros prêmios e o filme estava acontecendo, circulando e recebendo convites do mundo todo. Foi incrível. Tudo isso, ainda mais sendo o nosso primeiro filme, ajudou a garantir uma distribuição melhor nos cinemas argentinos.
CA: O fundamental, para nós, foram os retornos que recebemos do público. Acreditamos ter feito um filme muito honesto, sensível, cheio de afeto. E mesmo tendo sido filmado em um deserto no interior da Argentina, contando com uma mulher com mais de cinquenta anos como protagonista, que perde tudo e precisa encontrar um jeito de ressurgir no meio deste vazio, deste limbo onde ela se encontra, a percepção que tivemos é que conseguimos nos comunicar com os mais variados espectadores. Afinal, tínhamos um conflito concreto, bem específico, e o nosso interesse era explorá-lo da melhor maneira. Acreditamos que este é um drama universal, com o qual qualquer pessoa, de qualquer parte do mundo, pode se identificar.
E é também uma história de amor, não?
CA: Com certeza. Temos em cena essa mulher e esse homem, e por mais que ele pareça ser o oposto dela, eles acabam se comunicando. São dois solitários, afinal. O amor é um elemento muito forte no filme. Ao mesmo tempo em que há muita desgraça, muita tristeza, muita coisa ruim acontecendo ao redor do mundo, A Noiva do Deserto consegue se conectar com o espectador num outro nível. E isso é o mais especial de tudo.
Vocês pretendem seguir trabalhando juntas?
VP: Quando terminamos esse filme, juramos que nunca mais trabalharíamos juntas (risos). Agora, no entanto, já estamos desenvolvendo nosso próximo roteiro, e em parceria.
CA: Vamos seguir trabalhando juntas, sempre que for conveniente para as duas, é claro. Há muitas histórias femininas que precisam ser contadas, e estamos ligadas nisso. Esperamos que A Noiva do Deserto seja parte de algo maior, e que possamos fazer outros filmes com essa mesma pegada, voltado a um cinema que privilegie um ponto de vista mais feminino – não temos nada contra os homens, mas é preciso abrir espaço para nós, as mulheres, não é mesmo?
(Entrevista feita em conexão direta entre Porto Alegre / Buenos Aires em janeiro de 2018)
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