Na última sexta-feira, 16 de julho de 2021, a Mostra Um Certo Olhar do Festival de Cannes 2021 anunciou os premiados da edição, incluindo uma menção honrosa para o drama A Noite do Fogo (2020), coprodução entre México, Brasil, Alemanha e Qatar, dirigida por Tatiana Huezo. No Brasil, o filme será distribuído pela Vitrine Filmes.
A trama se situa nas montanhas mexicanas, onde um pequeno povoado sofre com ataques constantes da milícia, do exército e da polícia locais. As mulheres são particularmente visadas, quando as meninas começam a ser sequestradas pelos estrangeiros. Neste contexto, três garotas pré-adolescentes começam a descobrir os perigos do mundo adulto. O Papo de Cinema conversou em exclusividade com a cineasta salvadorenha-mexicana a respeito deste surpreendente longa-metragem de estreia:

A cineasta Tatiana Huezo

Por que quis contar esta história pelo ponto de vista das crianças?
Era fundamental me aproximar desta história pelos olhos de uma garotinha. Queria olhar e falar do contexto brutal de violência por um ponto de vista diferente. Para mim, era importante construir uma história onde o monstro não é visto. Entendemos o impacto apenas pelo rosto das meninas, por suas reações e pelo que acontece a elas. A violência se transmite nos olhos grandes de Ana (Ana Cristina Ordóñez González), tão surpresos ao ver o mundo. Esse era um dos preceitos fundamentais. Isso me permitiu trazer um contraponto de magia, de ternura e rebeldia, além de dúvida e curiosidade, que são traços típicos da infância e proporcionam um olhar honesto a este mundo violento. Ao mesmo tempo, este é um olhar contestador: as meninas questionam aquilo que estão vivendo com suas mães. Elas têm um senso crítico desenvolvido na família e na escola rural.

Como preparou as atrizes pequenas para cenas tão violentas com animais e armas?
Trabalhei com uma mulher incrível que foi fundamental para prepara-las: Fátima Toledo. Tive a sorte de recebê-la no projeto. Já tinha ouvido falar do trabalho dela muitos anos antes, quando assisti a Boi Neon (205) em Sarajevo e fiquei impressionada com as interpretações dos atores. Conheci o Gabriel Mascaro depois de assistir a este filme espetacular, e a única pergunta que fiz para ele foi: “Como você fez para conseguir esta interpretação dos atores”? Ele me disse que isso vinha da Fátima Toledo. Ela é uma xamã! Foi incrível aprender com ela, porque tem profundo conhecimento sobre o ser humano, além de grande sensibilidade. A Fátima sequer falava a língua das atrizes, porque as meninas do filme são moradoras das montanhas de verdade; a maioria delas é filha de camponeses. Mesmo assim, a linguagem era o de menos. A Fátima preparou as atrizes para encararem física e psicologicamente o projeto. A preparação durou três meses. Nunca lemos o roteiro, apenas imergimos as meninas no universo do filme, desenvolvendo a ideia do medo e da ameaça permanentes. Além disso, partimos das identidades reais das meninas, com seus pesadelos, perdas e afetos na vida pessoal. Essa foi a matéria-prima utilizada para a preparação.

A Noite do Fogo

Considera A Noite do Fogo uma fábula do México, ou da América Latina atual?
Não. Acredito que seja muito mais complexo do que uma fábula. O filme tem muitas arestas, e estamos submersos num contexto cujas raízes se encontram na desigualdade. Esta é a origem de todas as violências. Assim nascem os monstros que dominam o México há muitos anos. Não diria que se trata de uma fábula sobre a América Latina. Na minha visão, o filme representa os nossos espaços, as nossas realidades. As mulheres sempre estão vulneráveis nestas situações, algo muito característico dos países da América Latina. Precisamos efetuar um grande trabalho para corrigir isso, e desconstruir a má educação absorvida desde as avós e tataravós, ainda surtindo impacto atualmente.

A educação é muito importante na história. O acesso é escola representa a principal alternativa para estas garotas fugirem ao contexto de opressão?
Com certeza. A educação é fundamental para transformarmos a realidade que vivemos. Isso serve tanto para a escola quanto para o ambiente doméstico. Para mim, a escola dentro do filme é como uma semente. Esta é a minha homenagem aos professores rurais no México. Escrevi o personagem de Leonardo pensando nos professores que se formam e são logo enviados aos povoados carentes, onde oferecem aulas multidisciplinares. Queria que a figura de Leonardo trouxesse um pensamento crítico às meninas. Isso era muito importante para mim, e ajudaria a fundamentar a rebeldia delas. Estas personagens femininas são complexas e contraditórias, e o pensamento crítico as ajuda a questionar o mundo onde se encontram. Elas são mulheres que, quando estiverem maiores, poderão agir de fato sobre a realidade, com uma consciência diferente sobre o mundo onde moram. Elas sabem dos obstáculos e tudo o que eles implicam, mas para além da tragédia, quis apresentar personagens capazes de mudar, que não se conformam o mundo ao redor.

Esta realidade tão específica pode ser compreendida igualmente fora do México?
Acredito que este contexto possa ser compreendido da mesma maneira por todos. Todos nós já fomos crianças com nossos brinquedos, nossas brincadeiras lúdicas. Já vivemos aquela fase de querer devorar o mundo, de ter uma paixão muito grande pelas coisas, ou de experimentar decepções profundas. O filme nos faz voltar à nossa infância, e esse laço é universal. Além disso, a situação de vulnerabilidade onde se encontram as meninas pode ser compreendida em qualquer cultura. Podemos nos comover com este tema enquanto seres humanos com dilemas equivalentes. O filme nos aproxima dos personagens, nos deixa próximos e passíveis de identificação. Assim, podemos entender o que sentem ao longo da história.

Em que medida a coprodução com o Brasil estruturou o projeto?
Foi incrível pós-produzir o filme no Brasil. Eu me apaixonei pelo Brasil, e pude visitar o Recife, embora tenha ficado com medo de entrar no mar por causa dos tubarões. Não conseguia acreditar nisso! Mas foi lá que fizemos a construção sonora, que inclusive recebeu um prêmio paralelo em Cannes. Conheci o Rio de Janeiro, onde fizemos toda a correção de cor com o Fábio Souza, e a pós-produção. As imagens ficaram espetaculares, de uma qualidade linda na tela grande. A produtora brasileira, Desvia, abraçou o filme e se tornou a nossa companheira, capaz de viabilizar o projeto e torná-lo real.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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