Responsável por filmes como Antes do Fim (2017) e Elegia de um Crime (2018), Cristiano Burlan está novamente na seara dos festivais, mais precisamente no 29º Festival de Cinema de Vitória. Seu mais recente projeto é o drama A Mãe (2022), estrelado por Marcélia Cartaxo e que também passou pelos festivais de Málaga e Gramado. Na trama, Marcélia é Maria, uma mãe solo que vive na periferia de São Paulo. Certo dia, ao voltar para casa à noite, não encontra o filho adolescente. Depois de uma busca ininterrupta pela vizinhança, começa a ameaçar a tranquilidade dos traficantes locais que decidem contar que Valdo foi assassinado pela polícia. Já de olho no circuito comercial, cuja estreia está prevista para 10 de outubro, o realizador conversou com o Papo de Cinema para falar sobre criminalidade, linguagem e inspirações pessoais. Confira este bate-papo exclusivo abaixo.
Como surgiu a ideia do roteiro e de que forma esse enredo se encaixa na atual conjuntura política e social do Brasil de hoje?
Infelizmente faz parte da nossa História. Não é de agora. Antes de mais nada, trata-se de terrorismo de Estado, principalmente nas periferias das grandes cidades brasileiras. A ideia do filme nasceu a partir de fatos. Em 2006, em consequência dos ataques do PCC na cidade de São Paulo, o então governador liberou a polícia militar para matar quem ela julgasse necessário. Mas quem morreu nessas chacinas foram principalmente jovens pretos e periféricos. Quase 600. Muitos desses corpos não foram encontrados até hoje e os casos não foram julgados. Depois disso, essas mães, que não tiveram direito de enterrar os corpos de seus filhos, iniciaram um movimento inspirado nas Mães da Praça de Maio (associação argentina de mães que tiveram seus filhos assassinados ou desaparecidos durante o terrorismo de Estado da ditadura militar, que governou o país entre 1976 e 1983). Tem outro elemento que me ajudou a escrever o roteiro junto com a Ana Carolina Marinho, já que também fazemos teatro, a Antígona. Só que nessa clássica tragédia grega a protagonista luta pelo direito de enterrar o corpo do irmão. Por fim, há uma experiência própria envolvida na trama. Minha mãe teve um filho assassinado, meu irmão Rafael, em 2001, com sete tiros pelas costas a mando de uma quadrilha, na época não se usava o termo milícia, comandada por policiais.
Como funcionou a escolha da Marcélia como protagonista e como foi a parceria com a atriz?
Meu primeiro impacto com o trabalho da Marcélia foi lá com A Hora da Estrela (1985) e sempre guardei essa dimensão humana que o rosto dela é capaz de receber. Geralmente as interpretações – e estou generalizando, claro – não existe cinema universal, falar de cinema brasileiro é uma frivolidade. Não existe cinema brasileiro, existe o cinema do norte do Acre, do interior do Rio Grande do Sul e afins, cada um com sua especificidade. Mas a Marcélia tem uma coisa instintiva de não ter a responsabilidade de ser o emissor de emoções e significados. Ela simplesmente tem, antes de mais nada, um rosto que recebe isso e a possibilidade de interpretar tantas cargas dramáticas. Desde a primeira ideia, não via a possibilidade de não ser a Marcélia a protagonista. Escrevemos pra ela. Se não aceitasse, não faríamos. E durante o filme não foi um processo fácil, nem pra mim, nem pra ela e nem pro restante dos envolvidos.
“Não existe cinema brasileiro, existe o cinema do norte do Acre, do interior do Rio Grande do Sul e afins, cada um com sua especificidade”.
Você e Marcélia juntos nesse projeto na cidade de São Paulo. Como foram os dias de gravação?
A cidade de São Paulo tem quatro climas num dia e milhões de habitantes, o que dificultou as várias cenas externas. E pra ela também foi difícil porque esses temas são fortes. Mas foi uma viagem em conjunto e uma experiência única. É claro que o resultado importa, a aceitação, premiação, divulgação… mas o que fica pra mim é a experiência.
O filme foi exibido em Málaga, Gramado e, agora, em Vitória. Existiram diferentes aceitações do público?
Sabe aquela frase “se queres ser universal, cante sua aldeia“? Do Tolstói? Pois é, não acredito muito nisso. Isso beira uma coisa chamada globalismo, que fracassou. O ser humano é, sim, universal, mas também é específico. Houveram diferenças sim, mas menos regionais e mais individuais. Sinto que a recepção aqui em Vitória foi mais quente do que em Gramado, por exemplo. Não sei se isso tem haver com a lotação das salas, mas sinto que aqui foi mais calorosa.
E para o público em geral, quando chegar ao circuito… como imagina que o longa será recebido?
A gente nunca tem certeza, mas acredito que esse filme também gera uma contradição. Isso porque fala de pessoas que não tem acesso ao cinema. Os personagens da história não teriam como se deslocar para um shopping center e pagar R$ 40,00 num ingresso de cinema durante a semana, que é repleta de trabalho e stress. O que mais desejaria é que esse filme chegasse na TV aberta e atingisse o máximo de pessoas possíveis. Gostaria que furasse a bolha, pois tem uma honestidade e isso é importante.
(Entrevista feita durante o 29º Festival de Cinema de Vitória, em setembro de 2022. O Papo de Cinema está na capital capixaba a convite da organização do evento)
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