Crítica
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Sinopse
Maria é uma migrante nordestina em São Paulo. Vendedora ambulante, ela está em busca de seu filho Valdo, desaparecido depois de uma batida promovida por policiais militares durante uma ação na periferia onde ela mora.
Crítica
Maria (Marcélia Cartaxo) é a mãe solo de um adolescente. Moradora de uma região periférica em que a violência aparece diariamente, ela corta um dobrado como vendedora ambulante para evitar a falta de algo em seu humilde lar. Marcélia, atriz que marcou época no cinema brasileiro dos anos 1980 ao interpretar Macabeia em A Hora da Estrela (1985), volta a viver uma nordestina que migrou para São Paulo em busca de melhores oportunidades de vida. Temos migalhas do passado de Maria, mas a simples menção do deslocamento de sua terra natal – à qual acredita nunca mais vai voltar – é suficiente para remontar às jornadas de tantos nordestinos que rumaram ao sudeste mirado como um oásis de emprego e fortuna. No entanto, a protagonista de A Mãe mal consegue pagar os ovos (cujo valor aumenta consideravelmente) com o recebido pela revenda de produtos fornecidos por imigrantes coreanos atravessadores de falsificações. O cineasta Cristiano Burlan desenha bem esse cenário pobre e habitado por gente que batalha cotidianamente pela manutenção de sua dignidade. O filho de Maria, Valdo (Dunstin Farias), é um jovem que utiliza as palavras e as rimas para expressar indignação. Aliás, a poesia se faz presente em outro momento do filme, na bonita menção ao artista Patativa do Assaré. O pastor que gostaria de ser poeta também simboliza as poucas alternativas dos pobres.
Depois desse contexto, A Mãe nos lança numa situação aterradora. Valdo sai na companhia de um amigo para realizar testes num grande clube de futebol – e está aí outra alternativa aos rapazes humildes que desejam prosperar: tornarem-se futebolistas. No entanto, algo acontece e o adolescente deixa vazia a cama do quarto dividido com a mãe ao não retornar para casa. Em princípio, Cristiano Burlan não mostra o quê (e se) aconteceu com o garoto para ele se perder no caminho de volta. Assim, a angústia de Maria pelas ruelas da comunidade, durante as conversas com agentes policiais e nos diálogos com vizinhos e marginais conhecidos é compartilhada com o espectador que tampouco sabe do paradeiro de Valdo. E a ignorância poderia aumentar substancialmente a espessura dessa dor, como convém aos casos de gente desaparecida. É comum ouvirmos que desconhecer o paradeiro de entes queridos durante anos é pior do que a certeza de uma fatalidade, pois a dúvida prolonga o sofrimento. Então, é curioso que Burlan (cineasta experiente e de talentos demonstrados em diversos trabalhos anteriores) não consiga consolidar essa dúvida como um elemento motivador. E o cineasta opta por um tom sóbrio, no qual os rompantes são restritos a instantes específicos do desespero rompendo a carapaça de cordialidade resignada com a qual Maria provavelmente enfrenta o mundo há muito tempo.
A Mãe é um daqueles filmes propícios para uma atriz brilhar. Não à toa, Marcélia Cartaxo ganhou com ele o seu segundo Kikito de Melhor Atriz no Festival de Gramado. A câmera fica quase sempre colada na sua personagem que perambula em busca do filho. No entanto, mesmo essa intérprete de grosso calibre é afetada pela apatia imposta pela direção (presente em praticamente todos os segmentos do filme). E, embora o contexto social seja descrito satisfatoriamente, ele não carrega subsídios que o tornem suficientemente denso como uma moldura à vivência dos personagens. A conversa com Alemão (Henrique Zanoni), o mandachuva da bandidagem local, carece de intensidade dramática (e verdade), assim como o diálogo de Maria com o policial civil que expõe a covardia do corporativismo. A experiência repetitiva e melancólica da protagonista poderia servir para asfixiar o espectador em meio aos percalços da jornada fadada a ser malsucedida. Porém, essas características surgem como efeitos colaterais indesejados de uma encenação desatenta aos detalhes nas trocas e nas interações humanas. É possível perceber as marcas de cena, com os integrantes do elenco "denunciando" a espera da deixa para dizer o que deveria surgir por meio da representação de uma crível espontaneidade. Além disso, a observação de Burlan da periferia à carente de potências e voltagens social, humana e políticas.
Confundindo às vezes introspecção com apatia, A Mãe não aprofunda a revelação de várias tragédias. Burlan não imprime “eletricidade” (veemência, ímpeto) à marcha de Maria e tampouco inflama/anima as cenas enquanto a reponsabilidade policial promove a hesitação dos vizinhos e a insatisfação da bandidagem. Os diálogos duros, as tentativas vãs de construir um panorama complexo de reponsabilidades, vítimas e algozes, transformam essa peregrinação numa caminhada bem menos angustiante do que poderia ser rumo à certificação das teses mais prováveis sobre o destino de Valdo. É interessante a forma como o cineasta denuncia os poderes exercidos naquela periferia. O bandido, o policial e a religiosa são as únicas pessoas que pedem licença para entrar na casa de Maria. No entanto, esses três pedidos vêm sempre carregados de uma passivo-agressividade variável que insinua a impotência da proprietária da residência diante de forças que dominam as regiões empobrecidas. Marcélia Cartaxo é uma gigante que, como tal, se esforça para dignificar a mãe embotada pela persistência da miséria. Contudo, a abordagem de Cristiano Burlan soa um tanto postiça em instantes-chave do filme, criando com isso uma sensação de artificialidade. E, por fim, o realizador não aposta até o fim da dúvida, tratando de esclarecer o que aconteceu, ainda que o faça num plano bonito e triste.
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