O 26o Festival de Cinema de Vitória teve muitas caras – Marcélia Cartaxo, que estava em dois filmes na mostra competitiva, Vera Fischer, que foi a homenageada nacional – e certamente uma das mais marcantes, ao lado dessas citadas, foi a de Silvero Pereira. Se antes ele era conhecido nacionalmente como o Nonato da novela A Força do Querer (2017), agora todo mundo o vê como o Lunga do filme Bacurau (2019), um dos grandes sucessos nacionais desse ano. Presente na capital capixaba para ministrar uma das tantas oficinas paralelas oferecidas pela programação, também fez às vezes de apresentador em uma das noites, caracterizado como uma das suas outras personagens-assinatura – a drag queen Gisele Almodóvar, do curta Transphobia (2013) – além de ser uma das figuras mais procuradas para selfies, abraços e declarações entusiasmadas de fãs e admiradores. Aproveitando essa proximidade, o Papo de Cinema o convidou para uma conversa exclusiva, na qual falamos de toda a sua carreira na tela grande e como está sendo a vida após o sucesso de Lunga. Confira!
Silvero, você participou do 26o Festival de Cinema de Vitória como oficineiro. Queria pedir que falasse um pouco sobre essa proposta que trouxe ao evento.
Vamos lá. A oficina se chama Estado e Criação de Cena, e sempre a coloco no lugar de quais são as minhas percepções em relação à arte de representar. Trabalho muito com as essências disso. Meus principais objetivos são, desde o início, deixar claro aos alunos que é preciso partir em busca dessa verdade, até mesmo individual. Aviso, também, que não devem esperar que no final eu apareça com uma varinha de condão, batendo na cabeça de cada um, dizendo que “a partir de agora você é um ator”. Isso é um processo de cada um. Tento trazer ferramentas e instrumentos que, ao longo da minha trajetória, fui escolhendo, seja através de teorias ou de práticas, o que funcionava ou não para o Silvero. Mas, o mais essencial, é ajudá-los a descobrir quem são, como quebrar suas amarras, estenderem seus limites para depois começar esse processo de busca pela verdade. É também, claro, o exercício de uma relação de afeto.
Esse foi um trabalho preparado especificamente para o Festival de Vitória, ou você tem circulado por outros lugares com ele?
Essa oficina foi apresentada em outros lugares. Vim para Vitória por causa de um outro festival, o Curta Taquari, em Taquaritinga do Norte, Pernambuco, onde conheci a Lúcia Caus, diretora desse maravilhoso evento capixaba. Na ocasião, ela me fez o convite para vir pra cá. Mas já tinha feito esse mesmo exercício no Ceará, e também em outros estados, como São Paulo, Rio de Janeiro. Há um tempo tenho circulado com essa oficina.
Você é um nome em alta atualmente, mas não é um novato. Começou no cinema há alguns anos, e já numa grande produção, Serra Pelada (2013). Como foi dar esse primeiro passo em algo com essas dimensões?
Foi bem louco pra mim. Realmente, foi minha primeira experiência de atuação no cinema. E, naquele ano, foi a maior produção audiovisual feita no país. Quando me dei conta, estava ali, ao lado daquelas pessoas, contracenando com talentos tão incríveis. Foi uma oportunidade de grande aprendizado. Enquanto ator, sempre fui muito antenado. Comecei, dentro da arte, entendendo que precisava observar todos os ofícios. No Serra Pelada, já era esse ator que observava como o Heitor Dhalia dirigia, como a produção se organizava, como os demais atores se portavam. Minha preocupação era entender o geral.
Foi um começo e tanto, e não apenas para a formação do ator Silvero Pereira, então?
Foi uma experiência de atuação, mas também de grande aprendizado. Talvez a figura mais importante em todo o processo que representou o Serra Pelada na minha vida foi a Kity Féo, que fazia a primeira assistente de direção. Era muito especial vê-la trabalhando, ainda mais sendo uma mulher. Filmamos em 2011, se não me engano, e naquela época presenciar uma mulher se impondo daquele jeito no set era realmente incrível.
Tem um filme teu que gosto muito, mas que circulou pouco, chamado Copa 181 (2017). Nele, você aparece como um dos protagonistas. Como foi assumir esse novo desafio?
O Copa 181 foi um projeto de afeto, feito com baixíssimo orçamento. Todos nós estávamos ali pelo simples fato de sermos próximos do Dannon Lacerda, nosso diretor. Estava circulando, na época, com o BR Trans, minha peça de teatro, pelo Rio de Janeiro, e o Dannon apareceu comentando sobre esse filme que queria fazer. Ele não tinha recurso algum, mas como éramos amigos, decidimos acontecer, com cada um colaborando da sua maneira. Foi muito especial.
A Kika, a sua personagem, era muito sofrida.
É verdade. Foi uma personagem que veio muito depois de toda a minha trajetória com o teatro, tratando de questões LGBT, sobre representatividade. E mais uma vez estava eu lá, fazendo esse tipo, travesti, drag queen, transformista e tal. É um filme que me faz questionar, hoje, qual é o meu lugar nesse espaço, qual o lugar de fala, quem deve, de fato, fazer esse tipo de papel e questionar, também, o mercado.
Você tem uma trajetória interessante também nos curtas-metragens. Como você vê esse formato de cinema?
Tem uma coisa muito engraçada, para mim, que é o fato de ser cearense, mas nunca ter produzido nada no meu estado. Tudo que fiz no audiovisual foi fora do Ceará. Lá, até hoje, só me chamaram para fazer teatro. Um dos curtas que amo ter feito foi No Fim de Tudo (2017), do Victor Ciriaco. Aliás, é assim que funciona com os curtas, um chama o outro. Por exemplo, esse só aconteceu porque estava no Rio Grande do Norte fazendo um outro curta, o Mar de Zila (2016), da Ariane Mondo. No dia do lançamento desse filme, em Natal, a produção do No Fim de Tudo estava lá. Não haviam decidido quem iria fazer o personagem, e quando me assistiram vieram conversar comigo e já fizeram o convite, para uma produção que começaria dali uma semana. Embarquei direto, e foi uma grata surpresa. Todo o pessoal, na frente e atrás das câmeras, foi incrível. A oficina que faço tem muito disso, desse jogo de memórias, sobre como se deixar afetar pelos personagens.
Você acabou de fazer um personagem que certamente deverá marcar toda a tua carreira, que é o Lunga de Bacurau (2019). Quando recebeu o convite e leu o roteiro, tinha ideia da força que o projeto teria?
Confesso que não fazia ideia da repercussão desse personagem. Sabia, pela própria estrutura do roteiro, que seria uma figura muito instigante. Tanto que, antes mesmo da estreia do filme, a produção segurou muito as imagens dele. Como um elemento surpresa, para que não se perdesse. Mas não imaginava que desenvolveria uma relação tão próxima com as pessoas. Recebo, diariamente, pelas redes sociais, uma porrada de coisas em relação ao Lunga. De como elas se sentem representadas, e felizes. Até desenhos. Teve quem pedisse spin off do Lunga.
Bacurau é um filme sem protagonistas. Ou seria o contrário, todos os personagens tem seu momento?
Desde o início do processo, sabíamos que seria um filme horizontal com o elenco. Sempre foi esse o objetivo do Kleber e do Juliano. Não importava se teria o Udo Kier, a Sonia Braga ou alguém da comunidade. O importante é que todos estivessem sendo mostrados e com um tempo de câmera equivalente. Não acho, também, que fosse assim por uma generosidade dos diretores, mas para que não tivesse protagonismo, que esse fosse um espaço ocupado pela comunidade e pelo que ela estava sofrendo.
Tem uma história curiosa sobre a tua seleção para o papel de Lunga, não é mesmo? Qual foi a tua característica determinante para ser escolhido para o papel?
É verdade. O Kleber falou que eu tinha cara de que mataria alguém (risos). Quando a gente conversou, me disse que a única imagem que tinha minha era com o cabelo grande. O Lunga, no roteiro original, era uma mulher transexual. Voltando a tudo aquilo que o Copa 181 me causou, me impactou quando foi para fazer Bacurau. Queria muito trabalhar com o Kleber, mas decidi cortar o cabelo para tentar convencê-lo a me colocar numa imagem diferente. Era muito arriscado. E eu sabia disso.
Você que impôs essa mudança, então?
Exatamente. A conversa que tive com ele foi muito dolorosa. Pois, ao mesmo tempo em que queria trabalhar com esse cara, tinha os meus princípios. Foi quando disse: “olha, se você quiser seguir com esse personagem como uma mulher transexual, acho que deveria procurar uma atriz transexual para fazer seu filme”. Deixei bem claro que tudo isso me doía muito, mas acreditava que, se ele me colocasse no filme, depois que estreasse surgiriam questões que não eram as que estavam buscando. Inclusive de resistência em relação ao mercado. Mas também disse: “no entanto, se você me quiser no filme, podemos pensar por outros caminhos, até chegarmos num resultado que seja satisfatório para todos nós”. E ele foi muito generoso, junto com o Juliano e a Emilie Lesclaux, a produtora. Foi uma conversa entre nós quatro. Naquela mesma noite, quando ainda não estava escalado, o Kleber virou para mim e disse: “não, vou ficar com você porque tem cara de que mataria alguém”(risos).
Como tá sendo essa vida pós-Lunga e pós-Bacurau? Você já tem outros projetos engatilhados?
Gosto muito de dizer que não tenho projeto nenhum. Ontem fiquei até às quatro da manhã bebendo com uma amiga, e estávamos falando justamente disso. Hoje gosto de dizer que não estou fazendo nada. Quando as pessoas nos perguntam isso, na verdade querem saber se você está na televisão ou no cinema. E não estou nesses canais. Não tenho nem proposta, nem sei se volto para a televisão ou não. No cinema, por outro lado, vou fazer agora um filme que se chama De Repente Drag, no Maranhão. Aceitei esse convite com isso em mente. Se me perguntam “quem é o diretor, qual é a produção?”, não faço nem ideia. Aceitei mais pelo argumento. Chegou até mim através de uma preparadora de elenco do Faustão, que é amiga da produtora e me indicou. Me mandaram o roteiro, e super topei. Mas, mesmo antes disso, já havia topado, pois esse é um filme dessa última levada da Ancine com temática LGBT que conseguiu receber o dinheiro. Dentro desse novo contexto que estamos vivendo, sabe-se lá quando teremos outra produção do gênero sendo feita. Só por isso, já estava dentro. Não me importa como seria feito o trabalho, queria participar.
Por mais que pareça clichê, essa pergunta parece necessária nesse momento: cinema, teatro ou televisão?
Meu coração bate muito feliz com todos esses meios. O teatro é a minha origem, é a minha casa. Estou tentando aprender a voltar ao teatro. Nos últimos dois anos e meio, tão envolvido com cinema e televisão que estive, me distanciaram da minha arte, e hoje parece que não sei mais fazer teatro. Esse lugar do cinema e da televisão é muito arenoso. Por mais que você tente fazer o seu trabalho, existem interferências que te colocam em pedestais, em totens, que é inconsciente. É do mercado. Se você não tem muita consciência disso tudo, é capaz desse esforço ser destruído muito facilmente. Tenho trabalhado constantemente para não entrar nesse lugar. É por isso que, nos últimos tempos, o que tem me feito sentir bem é ter voltado para o teatro. Nas últimas semanas, para você ter uma ideia, tenho circulado pelo nordeste, dentro do meu carro, com meu cenário e com as pessoas que gosto, levando o teatro para qualquer lugar que me for possível alcançar. Estou indo para cidades muito no interior do Ceará, mas são lugares que me conhecem pela televisão. É o Silvero do Faustão, da novela, mas também do teatro. E agora também do Lunga.
Tem um Silvero antes do Lunga e agora um após o Lunga?
Tem. Com certeza tem. Acho que Bacurau é um projeto muito especial. Não foi resultado de uma hierarquia da indústria. Muito pelo contrário. Foi conversado o tempo inteiro. O processo de criação do Lunga, por exemplo, só foi possível por causa dessa primeira conversa que tive com Emilie, Juliano e Kleber. Tudo o que me disseram, ali, foi o que levei para a cena. E em especial as trocas que tive com a Rita Azevedo, que fez o figurino, e com Tayce Vale, que fez a caracterização. Foram elas que mandavam imagens, e a partir dessas fomos debatendo até chegar ao visual do Lunga. Foi bem colaborativo. Saí de Bacurau com outra experiência. Talvez por isso esse filme siga tão especial para todos nós. Temos dois grupos no whatsapp, o ‘Bacurau Saudades’ e o ‘Bacurau Cannes’. Nesse último, só quem foi para o festival. E o outro foi para matar as saudades de quem não temos encontrado a todo instante, inclusive com o pessoal da comunidade. É muito bom saber que tudo isso ainda vive com a gente. Essa relação de família, de amizade, que era uma coisa que apenas o teatro havia me dado, e agora veio do cinema.
O Papo de Cinema é convidado oficial do 26o Festival de Vitória
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