Crítica

Até que ponto os filhos são responsáveis pelas decisões dos pais? Muitas vezes o casal decide reorganizar suas vidas a partir da paternidade, mas como lidar quando é o contrário que acontece? O que fazer quando são os filhos que precisam se adequar às prioridades paternas? Isso pode muito bem acontecer hoje em dia em função da dissolução do casamento, da mudança de emprego ou até por falecimento de um dos progenitores. Mas e quando a motivação é política? Assim era durante a ditadura militar em países como o Brasil, o Uruguai, o Chile, o Paraguai. E também, é claro, na Argentina. E este é o foco da discussão promovida pelo belo e sensível Infância Clandestina, um dos mais premiados longas realizados no ano passado no país vizinho e que chega até nós com uma impressionante proximidade.

Representante da Argentina para disputar um indicação ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro – vencendo uma concorrência acirrada entre títulos igualmente fortes, como Elefante Branco (2012) e O Último Elvis (2012) – Infância Clandestina foi o grande vencedor da premiação da Academia de Cinema Argentino. A familiaridade com o Brasil, no entanto, vai além das questões técnicas. Esta co-produção entre os dois países conta com diversos talentos brasileiros, como o roteirista Marcelo Müller, o montador Gustavo Giani (Linha de Passe, 2008), e os atores Douglas Simon (Estamos Juntos, 2011) e Mayana Neiva (Os Normais 2, 2009). E se os personagens citam passagens pelo nosso território em suas andanças contra a perseguição militar, é mesmo na Argentina em que a história se constrói com verdadeira intensidade.

Juan foi o nome que o protagonista recebeu ao nascer, mas é por Ernesto que ele atende quando os encontramos pela primeira vez. A mudança se deve à condição familiar: são militantes refugiados do governo no final dos anos 1970. O novo nome é mais do que um capricho, e sim uma necessidade. O garoto, que tem em torno de 10 anos, está, ao lado da irmã ainda bebê, aprendendo desde cedo a se adaptar ao que a vida oferece. Junto com os pais, se escondem numa casa discreta. A condição é temporária, todos sabem, mas mesmo assim não impedem o menino de aspirar por algo diferente. De imaginar uma amizade mais forte com os colegas da escola, de vislumbrar uma proximidade maior com o tio, também rebelde, ou com a avó materna, contrária à tamanha insegurança. Ou mesmo em sonhar com a primeira paixão. A menina que passa a povoar seus suspiros, vizinha de rua e de classe, poderá ser tanto uma porta de fuga de um cotidiano marcado pelo perigo como também um alerta para uma condição de ainda maior atenção.

Um elenco escolhido à dedo – encabeçado pelos competentes Natalia Oreiro (Meu Primeiro Casamento, 2011), Ernesto Alterio (O que você faria?, 2005) e pelo uruguaio já quase brasileiro César Troncoso (O Banheiro do Papa, 2007), uma direção delicada do estreante Benjamín Ávila, e a produção toda-poderosa de Luis Puenzo (vencedor do Oscar de Filme Estrangeiro por A História Oficial, 1985), são alguns dos méritos deste filme que se não apresenta muitas novidades – suas semelhanças com o nacional O ano em que meus pais saíram de férias (2006) são mais do que evidentes – ao menos é eficiente em sua tarefa de envolver o espectador, comovendo sem exageros.

O drama da ditadura pode ser semelhante em toda a América Latina, mas é possível afirmar que na Argentina o impacto tenha sido ainda mais forte e trágico. Pouco se vê no filme, entretanto, sobre o âmbito geral da situação que se enfrentava. Isso, é claro, se dá pois o ponto de vista do espectador é o do garoto, aquele que ouve conversas pelas frestas, por trás das portas. Ele não está no cerne das discussões. Mesmo que sua vida há muito tenha sido abandonada em nome dessa luta por uma realidade melhor e mais justa, um lugar que, ao menos para ele, parece ser tão utópico quanto impossível. O mundo lá fora pode estar em pleno colapso, mas o que se passa no nosso interior sempre encontrará maior ressonância quando tratado com respeito e cuidado. Essa verdade é incontestável quando se está em plena formação. E é em enxergar este óbvio que Infância Clandestina mostra sua maior força.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.

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