Austin Andrews e Andrew Holmes não compartilham apenas o nome de um com o sobrenome do outro. Amigos de longa data, os dois tem atuado juntos nos últimos anos, empenhados e fazer do cinema canadense conhecido no mundo todo. Assinaram em conjunto a comédia Lord Jones is Dead (2016), que contou com cenas filmadas também na Austrália e na África do Sul. Esse apreço por cenários fora do comum se repete no segundo trabalho da dupla, The Island Between Tides (2024), título que pode ser traduzido para o português de forma literal como A Ilha entre Marés. Esse ambiente mágico, portanto, é parte essencial da história, que vem a ser a primeira adaptação para o cinema do conto Mary Rose, escrito por ninguém menos do que J. M. Barrie, autor de Peter Pan! E o pedigree não para por aí: sabe quem foi o primeiro cineasta a se interessar por esta trama? Alfred Hitchcock, o mestre do suspense! Ou seja, realizar algo que nem mesmo o diretor de Um Corpo que Cai (1958) e Psicose (1960) não conseguiu não chegou a amedrontar os dois colegas, e eis que agora o filme, já pronto, começa a percorrer o circuito dos festivais. Foi para uma dessas exibições que eles vieram ao Brasil. E aproveitando essa passagem, conversaram com exclusividade com o Papo de Cinema. Confira!
Andrews e Andrew, é isso? Desculpa a brincadeira. Imagino que vocês devem ouvir isso bastante. Rapazes, é um prazer falar com vocês.
Andrew Holmes: Bom, deixa a gente se apresentar, então. Eu sou o Andrew Holmes. Andrew é o meu nome. Ele é Austin Andrews, o Andrews é sobrenome. Um pouquinho diferente, mas não muita coisa, a gente sabe (risos). Compreendemos que algumas pessoas podem ficar confusas com isso.
Austin Andrews: Passamos doze anos pensando num jeito de combinarmos nossos dois nomes em um modo que ‘pegasse’, sabe? Um jeito deslocado e atraente de nos apresentar. Mas nada que valesse a pena surgiu, então seguimos assim.
Bom, como nasceu o projeto The Island Between Tides?
AA: Podemos começar essa história de inúmeras maneiras. Esse projeto está conosco há muito tempo. E, como você deve saber, a intenção de adaptar esse conto para o cinema começou muito antes de nós, então, foi uma verdadeira maratona. É um milagre esse filme ter sido feito, se levarmos em conta a quantidade de pessoas que já quiseram realizá-lo antes, a começar pelo grande Alfred Hitchcock. Mas fui eu que levei essa ideia até o Andy e disse que seria legal fazermos juntos. Fui o primeiro a ler o livro, quando ainda era adolescente, e depois cruzei novamente com essa história anos depois, quase que por acidente. A impressão que tive é que se tratava de uma pérola esquecida, algo que merecia ser analisado com cuidado. Afinal, sob muitos aspectos, temos aqui uma peça que nunca havia sido adaptada para o cinema antes! Além disso, há alguns anos a obra original caiu em domínio público, o que deixou esse processo mais simples. Porém, mais ou menos ao mesmo tempo, a Universal anunciou uma adaptação de Mary Rose, com um orçamento de US$ 40 milhões. Então, virei para o Andy, e disse: “que tal sermos os primeiros a realizar essa adaptação?”.
Imagino que o argumento tenha sido impressionante, pois conseguiu tornar realidade um filme que nem Hitchcock foi capaz!
AH: Claro que para isso contou muito a nossa ignorância quanto ao que seria necessário para fazer o filme. A gente simplesmente baixou a cabeça e foi em frente. Os problemas foram aparecendo pelo caminho. A primeira versão do roteiro era enorme, certamente tinha mais elementos do que a gente poderia dar conta. O filme que agora está pronto tem cerca de 100 minutos, isso significa que tivemos que cortar muita coisa. O primeiro corte tinha tranquilamente mais de duas horas, quase três. Era uma história densa, um tipo de narrativa com a qual não estávamos acostumados. E por isso foi tão bom trabalharmos juntos. Austin sabia bem o que queria contar, eu só fui me dando conta durante o processo. Claro que eu conhecia Peter Pan, já havia ouvido falar de J.M. Barrie, e quando li a história, me dei conta que havia algo incrível ali. Mas sabíamos também que não seria um filme de estúdio, que teríamos que reduzir a escala e lidar com as condições que tínhamos naquele momento. Foi por isso que filmamos no norte do Canadá, quase na fronteira com o Alasca, porque não só era mais barato, mas era também um lugar onde nunca haviam filmado antes. Aquele lugar adiciona um realismo mágico que tanto Barrie quanto Hitchcock certamente teriam adorado.
Interessante você mencionar isso, pois algo que impressiona no filme é a ilha e os demais cenários. Falem um pouco sobre como encontraram essas locações e a direção de fotografia do projeto?
AA: É isso mesmo. Foi o segundo filme que fizemos juntos. Então, havia um entendimento entre nós, sabemos como o outro trabalha. Tudo fica mais fácil assim. E algo que concordamos é que, sem a ilha certa, não haveria filme. Vou dizer, foi complicado encontrar esse lugar. Se chama Prince Rupert, e é muito inacessível, leva horas de balsa, lá no norte da Columbia Britânica, que já fica a umas tantas horas de distância de Vancouver. Filmar lá era uma decisão complicada, pois não há mão de obra local. Tivemos que levar tudo por nossa conta. Quando Andy e eu entramos num helicóptero para sobrevoar a região, foi a primeira vez de nós dois. Até então, conhecíamos o lugar apenas pelo Google Maps! Tínhamos outras opções na manga, é claro. Mas quando colocamos nossos olhos nela, todas as dúvidas acabaram: tinha que ser ali. E você tem razão, a ilha é um personagem do filme. Precisava ser real. Era um lugar tão remoto que funcionava perfeitamente para a história.
Paloma Kwiatkowski tem uma grande responsabilidade como a protagonista. Como foi o trabalho de vocês com ela?
AH: Levamos tempo até encontrar Paloma. Procuramos por três países: Estados Unidos, Canadá e Inglaterra. Olhamos para mais de 250 rostos, milhares de perfis de agências nos foram enviados. Acabamos nos deparando com ela no final do processo, aqui mesmo em Vancouver. Ela foi incrível durante o teste que fez conosco. Naquele encontro já tínhamos a sensação de que seria a pessoa certa para o papel. Lily é uma personagem com atributos específicos, que passou por uma adolescência congelada. E Paloma foi capaz de trazer isso à tona sem que a gente precisasse dirigi-la nesse caminho. Então, a levamos até Prince Rupert, e começou a ter aulas de piano. O comprometimento com o filme foi total. Tudo que pedíamos entendia, e ainda tentava colocar algo a mais. Ia além das nossas expectativas. Trabalhar com ela e com o David Mazouz, que interpreta Jared, o filho, foi impressionante. Era pura mágica. Parecia que se conheciam há anos. Foi muito simples. Sabiam exatamente o que estávamos procurando.
Bom, já que estamos falando do elenco, tenho uma reclamação: queria mais cenas com o Adam Beach! Não podem trazer um ator como ele e colocá-lo em apenas uma cena!
AA: (risos) A gente entende. E também sentimos falta de mais cenas com ele. Mas veja bem, o Adam chegou até nós no final das filmagens. Uma das nossas produtoras parceiras, Amber Ripley, tinha recém feito um filme com ele (Exile, 2023), e entrou no nosso filme nessa pequena participação quase como num favor a ela. Para nós foi incrível, imagina, trabalhar com um cara que é uma lenda! Adam Beach já foi indicado ao Globo de Ouro, ao Critics Choice, atuou para o Clint Eastwood, Jane Campion, John Singleton… o histórico dele é impressionante! Então, quando chegou, corremos para o computador e escrevemos essa cena extra, um pequeno momento para que pudesse emprestar um pouco do seu carisma ao nosso filme. Era algo que não estava no roteiro original, mas tivemos sorte de tê-lo, mesmo que tenha sido por apenas um dia.
AH: E precisamos dizer, foi um dos dias mais divertidos da produção. Afinal, a cena se passa toda no barco, e para isso tinha uma logística especial. Ficamos na água o tempo todo. Prince Rupert deve ser a cidade mais chuvosa de toda a América, chovia sem parar, todos os dias. E as previsões apontavam chuva forte, mas como você viu, tivemos uma imensa sorte e o sol brilhou! Ficou bonito. E ter a oportunidade de estar perto de Adam Beach, vê-lo atuando e depois ouvir suas histórias, foi mais do que jamais poderíamos ter esperado. Para se ter ideia, a maior parte do diálogo foi ele mesmo que inventou. Deixamos ele livre para improvisar. E ficou do jeito que havíamos imaginado.
Entendo que, caso permanecesse no filme por mais tempo, a trama poderia ir em outra direção. A questão étnica poderia falar mais forte.
AA: Sim, tens razão. Veja bem, há apenas dois personagens da peça original que estão no filme. Mary Rose, é claro, interpretada por Megan Charpentier, e Cam, feito pelo Adam Beach! No conto, ele é tipo um guia para Lily, o navegador que a leva e a traz de volta da ilha sempre que necessário. Então, tê-lo conosco representou também uma oportunidade de nos aproximarmos do que Barrie havia imaginado.
The Island Between Tides brinca com o que os personagens acreditam, mas também com a crença dos espectadores. Como foi lidar com essas duas camadas de leitura?
AA: Bom, o que é real para os personagens tinha que ser para nós também, então por isso Lily tinha essa visão de mundo diferenciada, por causa de sua experiência na ilha. Ela percebia algo que os outros não conseguiriam. Essa é uma camada de entendimento importante. Vê coisas que os outros não conseguem, mas que, em algum momento, poderiam ter visto, pois estiveram por ali no passado. A linha entre o que é real e o que não é gera o debate do filme. Há uma zona cinza entre esses extremos, e pode ser enorme. Muita coisa entre um e outro ponto. A nossa interpretação não precisa, necessariamente, ser a mesma de cada espectador. Cada um tem sua leitura. Isso é o mais interessante. Nas primeiras sessões que tivemos, em festivais de cinema, as pessoas chegavam para conversar após as exibições e surgiam com interpretações que nem havíamos imaginado. Isso é excitante. Não era o que pensamos, mas também possível.
AH: Há diferentes camadas de fé entre o que cada um acredita ser real. Nós tivemos essa experiência de irmos até aquela ilha e voltar, mas cada um na audiência fará sua própria jornada. Sabemos o que a protagonista está experimentando, pois estamos percorrendo esse caminho com ela. Mas o que cada um traz consigo pode fazer diferença. Veja o que acontece com os personagens: Lily tenta convencer o pai e a irmã de quem é, e o pai acredita de imediato. Com a irmã, no entanto, ela precisa provar, dizendo coisas que só as duas conheciam. São memórias que apenas elas compartilham. Mas como levar essa mesma certeza aos outros? A dúvida sempre permanecerá.
Vocês vieram apresentar o filme no Brasil. Já haviam estado por aqui antes?
AH: Austin já havia visitado o Brasil, mas essa foi a minha primeira vez. Fomos a Porto Alegre, e a experiência toda foi incrível. Participação do Festival de Cinema Fantástico, e a oportunidade de ter conversas como essa, com quem assistiu ao nosso filme e queria falar mais a respeito, é tudo o que buscamos.
AA: O que mais gosto do Brasil é o ‘pão de queijo’. Talvez a minha pronúncia não esteja correta, mas depois que você prova um, vai querer para sempre. É simplesmente delicioso (risos).
Vocês pretendem seguir trabalhando no cinema fantástico, com produções de gênero? Ou este foi um caso único?
AA: Acho que certamente voltaremos ao gênero. É o tipo de filme que gostamos de assistir, histórias de horror, sobrenaturais, com elementos de fantasia. Mas Andy e eu temos essa preocupação de não ficarmos estereotipados como diretores que fazem apenas um tipo de cinema. Queremos ir além do nicho. Veja só, nosso primeiro filme foi uma comédia, com sátira e até musical. Nosso próximo trabalho ainda estamos decidindo qual será, tem algumas ideias interessantes sobre a mesa. Por exemplo, adoraríamos fazer algo que se aprofundasse no terror, sabe? Mas pode ser algo completamente diferente. Vamos decidir com calma, e depois a gente te conta, ok?
Perfeito, vou aguardar por isso. Mas até lá, o que acham de filmar no Brasil, já consideraram essa possibilidade?
AH: Austin é um cara que viajou o mundo todo. Eu estou somente agora começando a tomar gosto. Há tantas aventuras que se pode ter em diferentes países. Já nos aconteceu de sermos convidados a ir até um lugar para um projeto específico, e, quando chegamos lá, ficamos tão encantados que milhares de ideias começaram a surgir. São possibilidades, portanto. Estes dias que passamos no Brasil foram propícios para muitas inspirações. A América do Sul, como um todo, é especial. A nossa imaginação vai longe quando lembramos de tudo o que vivemos, então certamente existe a chance de fazermos algo legal por aí também.
Entrevista feita por zoom entre Brasil e Canadá em abril de 2024
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