Crítica

Um Murnau é um Murnau. Parece coisa de gente chata que insiste que certos diretores são maiores que a vida. Mas não é o caso aqui. Murnau não é maior que nada. Ele é espelho do cotidiano. Faz mais que simplesmente refletir, traz poesia para a banalidade. Em A Última Gargalhada esta característica fica clara como os lavatórios onde seu protagonista é condenado a trabalhar após anos de dedicação a algo que ele considerava ser o mais importante dos cargos.

O suíço Emil Jannings deixou suas formas avantajadas serem o símbolo de uma parcela da sociedade alemã ao encarnar com extremo talento o porteiro do Hotel Atlantis, um dos mais elegantes de Berlim. Há quem pense que é apenas um emprego como outro qualquer, mas para o personagem é a razão de sua vida. Seu uniforme possui um peso, dado por ele próprio, que ele tem orgulho de carregar. Murnau deixa claro esta satisfação ao abrir A Última Gargalhada com o protagonista exercendo sua função em um dia de chuva com extrema alegria. Levar os hóspedes até o táxi, cumprimentá-los sempre sorrindo é o que o move para sair da cama todos os dias. E por falar em despertar, é também no início do filme que temos uma das passagens de tempo mais tocantes dos primórdios do cinema. De forma sutil, o prédio onde o porteiro vive “acorda”. Janelas se abrem, pessoas colocam os cobertores no sol, trabalhadores se encaminham para a rua. Uma cena simples, mas dotada de uma elegância que faz falta em muitos filmes da atualidade.

Mesmo que não possua as formas geométricas tão agudas como outros exemplares do período do expressionismo alemão, A Última Gargalhada também lida com os cenários de forma simbólica. A porta giratória do hotel, por exemplo, retrata o cotidiano agitado do porteiro que, após ser rebaixado como criado do banheiro masculino, passa suas horas de trabalho sentado e quase sempre sozinho num ambiente extremamente claro, frio, sem interação. O trabalho de direção de arte é forte, mas fica difícil competir com a força da interpretação de Jannings. Seu olhar brilhante e sua postura altiva, impondo sua barriga como se fosse um general, murcham suavemente após receber a carta que informa sua nova posição no hotel. Tudo porque o gerente o viu ofegante após carregar uma bagagem. Parece pouco, mas causa a revolução mais triste da vida de um homem que tinha sua força no uniforme que lhe permitia o respeito dos hóspedes e dos vizinhos.

A Última Gargalhada é uma tragédia e seu suposto final faz jus a este título. Porém, um epílogo foi acrescentado, garantindo um “final feliz” para o protagonista. Murnau deixa claro seu amor pelo personagem, mesmo ao deixar a história ao estilo de um conto de fadas com a escolha de recurso surgido do fundo da cartola e que destoa da narrativa até aquele momento. Há quem prefira guardar na memória o filme sem este adendo. Não importa o destino escolhido, um Murnau é sempre um Murnau. E encanta até hoje.

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é jornalista e especialista em cinema formada pelo Centro Universitário Franciscano (UNIFRA). Com diversas publicações, participou da obra Uma história a cada filme (UFSM, vol. 4). Na academia, seu foco é o cinema oriental, com ênfase na obra do cineasta Akira Kurosawa, e o cinema independente americano, analisando as questões fílmicas e antropológicas que envolveram a parceria entre o diretor John Cassavetes e sua esposa, a atriz Gena Rowlands.
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