Para quem conhece a obra de Billy Wilder e, principalmente, curte suas comédias realizadas a partir da década de 1950, talvez não imagine que existam momentos traumáticos na trajetória deste grande cineasta. Mas o que são os artistas geniais se não mestres na transformação de terríveis passagens em material para sua arte? Wilder perdeu sua família – mãe, padrasto e avó – durante a 2ª Guerra Mundial, com ele tendo conseguido fugir antes do cerco mais pesado de Hitler na Alemanha, partindo para a França e, depois, Estados Unidos, onde seria reverenciado como um dos grandes diretores de todos os tempos. Mas vamos voltar um pouco o relógio.

Nascido em 22 de junho de 1906 na Polônia, Samuel Wilder ganhou o apelido de Billie através de sua mãe, que adorava a cultura norte-americana. Curiosamente, um apelido muito mais comum para o seu irmão, William Wilder (que também trabalharia com cinema), já que Billy é um diminutivo para William. Ainda jovem, Billie tinha planos maiores do que sua família desejava para ele. Sua vontade não era seguir o caminho dos pais, confeiteiros em uma estação de trem. Tentou Direito, mas abandonou logo no início do curso, quando já morava em Viena. Partiu para Berlim, para trabalhar como jornalista e, nesta época, começou a assinar alguns roteiros para cinema. Judeu, não demorou em perceber que o poder de Hitler crescia velozmente e que teria problemas por isso. Assim que teve chances, partiu para Paris. Na França, assinando como Billie Wilder, o novato artista comandou seu primeiro filme como diretor: Semente do Mal (1934), em uma trama que mostrava um rapaz rejeitado pelo pai se voltando ao mundo do crime.

Antes mesmo do lançamento deste longa-metragem, em 1933, Wilder já se encontrava em Hollywood, onde gozaria sucesso sem precedentes. Claro que isso não aconteceria de uma hora para outra, mas logo ele mostrou talento com o roteiro da divertida comédia Ninotchka (1939), vendida como uma virada de carreira para a estrela Greta Garbo. Foi a primeira indicação ao Oscar de Wilder, como roteirista – aqui ele já assinava como Billy. Depois de outros sucessos escrevendo, o jovem conseguiu outra oportunidade de dirigir, desta vez comandando grandes nomes como Ray Milland e Ginger Rogers. Em A Incrível Suzana (1942), o diretor estreava na comédia colocando Rogers fingindo ser uma criança sob os olhos incautos de um major vivido por Milland.

Depois destas bem sucedidas produções, chegaria o divisor de águas na carreira de Billy Wilder: Pacto de Sangue (1944). No filme, estrelado por Fred MacMurray e Barbara Stanwyck, observaríamos o gênero noir tomar forma em toda a sua força. Stanwyck vive a mulher fatal e MacMurray o homem que é seduzido e induzido a cometer um crime. Pelo trabalho, Wilder receberia sua primeira indicação ao Oscar como diretor e sua quarta como roteirista. O momento era ótimo para o cineasta e ainda melhoraria no próximo ano, com Farrapo Humano (1945). Estrelado por Ray Milland, o filme tratava de um tema espinhoso para a época, não tocado pela Hollywood conservadora: o alcoolismo. Wilder recebeu o Oscar de Melhor Diretor e Roteiro, assinado ao lado de seu colaborador habitual, Charles Brackett, e ainda viu a produção vencer o grande prêmio da noite. Além de talentoso, o cineasta começava a ser visto na indústria como um homem que não temia as temáticas mais problemáticas.

Este sucesso deve ter dado coragem a ele em seguir com histórias pouco convencionais. Em 1950, o diretor assinaria uma crítica pontiaguda à degradação humana, apontando sua câmera para uma estrela decadente de Hollywood no inesquecível Crepúsculo dos Deuses. Ainda que tenha ganhado prêmios importantes e hoje seja um clássico absoluto, Wilder não foi agraciado com a estatueta do Oscar, como se fosse um recado da Academia para aquela visão tão pesada a respeito da fama pretérita. Isso não o impediria de continuar sua trajetória crítica assinando um dos mais interessantes filmes a respeito do jornalismo predatório, A Montanha dos 7 Abutres (1951). O filme não foi bem recebido na época pela mídia – principalmente por ela ter levado um grande tapa na cara do cineasta com aquele personagem desumano vivido por Kirk Douglas, um jornalista sem escrúpulos que faz tudo para permanecer com seu furo jornalístico. Pelo roteiro, outra indicação ao Oscar – a única do filme.

Em 1954, Wilder seria lembrado novamente pela Academia pela direção do drama de guerra Inferno nº 17 (1953) e, naquele mesmo ano, assinaria o simpático Sabrina (1954), com Humphrey Bogart e Audrey Hepburn. Mas o mundo não seria o mesmo depois de 1955, quando a estonteante Marilyn Monroe apareceu com suas pernas à mostra na clássica cena do vestido levantado em O Pecado Mora ao Lado (1955). A atriz era difícil e o cineasta estressou-se por demais com a estrela. No entanto, o resultado na tela é sensualidade como nunca antes havia sido mostrada no cinema – com um toque de ingenuidade que deixava tudo ainda mais interessante.

Depois daquele megassucesso, Monroe trabalharia novamente com o diretor em uma obra sem precedentes para o gênero cômico: Quanto Mais Quente Melhor (1959). Contracenando ao lado do hilário Jack Lemmon e do galã Tony Curtis – ambos travestidos como mulheres para escapar da morte iminente – a estrela rouba a cena por causa de sua beleza e do seu talento inato para a comédia. Apontado pelo American Film Institute como o melhor filme deste gênero em toda a história, Quanto Mais Quente Melhor deu a Wilder mais duas indicações ao prêmio da Academia: roteiro e direção. Antes disso, ele já havia aparecido novamente na festa pela direção de Testemunha de Acusação (1957), estrelado pela grande Marlene Dietrich – os dois já haviam trabalhado juntos em A Mundana (1948).

Se Meu Apartamento Falasse (1960) seria seu último trabalho irrepreensível, digno dos principais prêmios da Academia – com isto, ele seria um dos poucos a receber, pelo mesmo filme, as estatuetas de diretor, roteirista e produtor. Seguiram-se alguns bons trabalhos, mas nenhum tão brilhante quanto seus antecessores. Nesta lista, destacam-se Uma Loura por um Milhão (1966) – sua última indicação ao Oscar, como roteirista – A Vida Íntima de Sherlock Holmes (1970) e A Primeira Página (1974). Com cada vez menos chances de dirigir seus roteiros, perdendo espaço para cineastas mais jovens, Wilder foi se afastando mais e mais dos sets. Seu último filme foi Amigos, Amigos, Negócios à Parte (1981). Ensaiou um retorno à direção em 1993, em A Lista de Schindler, mas deixou para Steven Spielberg comandar a produção, ao pensar que a temática pessoal demais poderia atrapalhá-lo na hora de realizar seu filme. Billy Wilder faleceu em 27 de março de 2002, aos 95 anos, vítima de uma pneumonia, deixando um legado de grandes filmes, a maioria deles relembrados nesta pequena homenagem.

Filmes imprescindíveis: São muitos, mas para reduzir a lista, um drama e uma comédia: Crepúsculo dos Deuses (1950) e Quanto mais Quente Melhor (1959);

Filme esquecível: Amor na Tarde (1957), produção que nem com a presença sempre iluminada de Audrey Hepburn consegue ser salva;

Primeiro filmeSemente do Mal (1934), produção francesa lançada um ano depois de sua chegada em Hollywood;

Último filme: Amigos, Amigos, Negócios à Parte (1981);

Guilty pleasureSabrina (1995), a versão estrelada por Harrison Ford e com roteiro de Wilder;

Oscar: Billy Wilder é um dos recordistas de indicações ao prêmio da Academia. Como diretor, está empatado com Martin Scorsese como o segundo mais lembrado, atrás apenas de William Wyler. Foram oito indicações e dois prêmios: Farrapo Humano (1945) e Se Meu Apartamento Falasse (1960). Como roteirista, está atrás apenas de Woody Allen, com 12 indicações e três prêmios: Farrapo Humano, Crepúsculo dos Deuses (1950) e Se Meu Apartamento Falasse. Por este último, também levou a estatueta como produtor, já que a obra recebeu o Oscar de Melhor Filme. Foi agraciado ainda com o Irving G. Thalberg Award, em 1988, sete anos depois de ter se aposentado;

Filme perdido: Esteve perto de dirigir um filme dos irmãos Marx, mas com o falecimento de Chico Marx, a produção foi cancelada. Também chegou a discutir um trabalho com Stan Laurel e Oliver Hardy – conhecidos como O Gordo e o Magro – mas acabou desistindo. Em A Lista de Schindler, chegou a trabalhar no roteiro junto de Steven Spielberg (e não foi creditado), cogitando seriamente assumir a direção. Pelo tema pessoal e pela idade, preferiu ver Spielberg assinando a obra – o que lhe daria seu primeiro Oscar como Diretor.

Frase inesquecível: Ninguém é perfeito – frase que encerra Quanto Mais quente Melhor e uma das tiradas mais sagazes de qualquer comédia dirigida pelo cineasta. Em seu túmulo, inclusive, está escrito: Billy Wilder. Eu sou um escritor, ninguém é perfeito.

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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul. Jornalista, produz e apresenta o programa de cinema Moviola, transmitido pela Rádio Unisinos FM 103.3. É também editor do blog Paradoxo.
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