Crítica


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Sinopse

Uma pintora embarca numa jornada pessoal na cidade de Istambul ao descobrir segredos de um sítio arqueológico em Anatólia, cujos mistérios têm ligação com seu passado.

Crítica

A primeira temporada da série turca baseia-se inteiramente na figura do “escolhido”, a pessoal especial a quem são dados grandes poderes e responsabilidades. Ficções podem optar por narrar a jornada de pessoas comuns em situações banais, de pessoas comuns em situações extraordinárias, ou ainda pessoas extraordinárias em situações extraordinárias. Os criadores Gonenc Uyanik e Ozan Açiktan preferem este último caminho, retirando uma mulher de sua vida ordinária (ela está prestes a se casar, com perspectivas de ter filhos e seguir a carreira de pintora) para revelar que ela detém os maiores segredos do universo em sua mão. Atiye (Beren Saat), personagem que dá o nome original à série, mergulha numa aventura mágica que ela não controla nem escolhe, mas que lhe é imposta pelo destino. Ela lembra outras figuras recentes da ficção sobre “escolhidos”, como Harry Potter, Katniss Everdeen, Beatrice Prior e Neo, por ser o núcleo em torno do qual gira toda a narrativa. Os demais personagens, ações e espaços existem apenas para ela, seja para lhe dar a réplica ou atrapalhar seu caminho. “Atiye é o futuro, ela é a luz na escuridão”, explica uma personagem a respeito da protagonista.

Por este motivo, o espectador embarca numa fantasia junto da pintora, convidada a descobrir a sua essência a partir de intervenções externas que literalmente a confrontam ao universo. Atiye encontra uma feiticeira misteriosa, um arqueólogo com quem parece estar intimamente conectada, símbolos em grutas idênticos àqueles de suas pinturas, criancinhas com marcas de estrela na testa chamando por ela, mafiosos interessadíssimos em sua presença, cadernos escondidos com palavras secretas, números aleatórios formando códigos desconhecidos, línguas incompreensíveis, criptas perigosas, pedras fluorescentes, fantasmas benéficos, visões do passado etc. A pintora não precisa tomar qualquer iniciativa, pois o mundo ao redor o faz por ela. De certo modo, a narrativa se assemelha à estrutura de uma caça ao tesouro, formada por inúmeras pistas e armadilhas no percurso – com o diferencial de nunca sabermos qual recompensa existiria no final. Esta jornada parcialmente íntima (Atiye precisa descobrir quem é de verdade) e parcialmente cósmica (ela tem o poder de mudar a realidade) conjuga-se entre a ciência e o misticismo, entre a arqueologia e a religião. A jovem precisa usar tanto fragmentos de séculos atrás quanto mensagens transmitidas por visões sobrenaturais.

Felizmente, tamanha ambição é ancorada por uma produção muito competente. A série da Netflix possui orçamento confortável, bons atores, cuidado evidente com iluminação e montagem, além de efeitos visuais competentes, ainda que um tanto exagerados em cenas-chave. Os diretores possuem a complicada tarefa de representar uma aventura ao mesmo tempo verossímil e inacreditável, ou seja, plausível dentro da vida de classe média-alta da artista abastada e grandiloquente o bastante para parecer épica e ligada aos planos divinos. O Segredo do Templo nunca sabe ao certo se envereda por explicações cientificamente justificáveis como as realidades paralelas e o tempo cíclico, ou se aposta nas reviravoltas orquestradas por Deus. Em alguns momentos, o discurso se torna ostensivamente crente (“Somos todos parte do plano divino. Você não poderia ter impedido o que aconteceu com você”), em outros, se revela ciente de teorias quânticas como buracos no tempo permitindo, ao menos teoricamente, reescrever a História. Em outros instantes, ainda, mergulha num caminho puramente psicológico e/ou de autoajuda, quando Atiye faz uma sessão de terapia intensiva dentro de uma gruta, onde vozes sussurram: “Você era cega para os seus próprios sentimentos, não é? Alguém que não se ama pode amar outra pessoa?”, antes de concluírem: “Palavras têm vida”, num raciocínio tipicamente psicanalítico.

Estas indefinições conceituais seriam menos problemáticas se o roteiro não incluísse experiência de Atiye dentro dos códigos típicos das telenovelas. Ao longo de oito episódios, existem noivas abandonando o noivo no altar, vilões que orquestram assassinatos familiares em segredo, a mãe maliciosa que forja a doença psiquiátrica da própria filha, o noivo ciumento, o arqueólogo sedutor para formar um triângulo amoroso, a traição com a irmã da noiva às vésperas do casamento, os segredos de infância, as identidades trocadas na maternidade, as revelações sobre filiações escondidas na fase adulta. A narrativa dedica tempo excessivo aos amores românticos e familiares, que apenas distraem o espectador do conflito principal envolvendo as mensagens secretas no templo de Göbekli Tepe. Felizmente, os diretores jamais exploram o sentimentalismo excessivo, nem abusam de trilha sonora ou close-ups dos atores (recursos de linguagem comuns às novelas), em virtude do refinamento da produção. As locações jamais se assemelham a cenários em estúdio, o que provoca certo alívio. No entanto, a obsessão familiar com Atiye produz alguns momentos beirando o humor involuntário, especialmente no que diz respeito à comunicação do mafioso Serdar (Tim Seyfi) com uma vibração eletrostática que lhe dá ordens de encontrar a nora e garantir um casamento com seu filho.

Por estes motivos, a série procura ao mesmo tempo agradar os fãs de ficções científicas e suspenses sobrenaturais (como Stranger Things e Dark, por exemplo) e os amantes de telenovelas açucaradas sobre amantes cujos destinos estão traçados antes mesmo do nascimento. Por mais que o elenco seja bem dirigido, a escolha de tantos jovens belíssimos, com aspecto de top models e galãs, relembra a escalação típica dos folhetins da TV aberta. Beren Saat possui uma responsabilidade de peso no papel central: ela precisa ao mesmo tempo ser a mulher aberta a novos homens sedutores no caminho, mas também uma figura que viveria muito bem sozinha; a personagem cética quanto ao seu papel no mistério do templo, e uma jovem benevolente quanto aos sinais mais ínfimos em seu caminho. A atriz opta por uma composição curiosamente desinteressada e inconsequente. Isso não significa que ela seja pouco expressiva, muito pelo contrário: Saat possui gestos e corpos expressivos até demais, porém canalizados na construção de uma protagonista que sofre golpes sem realmente se abalar, ou como se não ligasse profundamente para nada. Os familiares fingem que você é louca e te entopem de medicamentos? Tudo bem, sem problema. Uma pessoa amada morre diante dos seus olhos? Paciência. Você descobre um segredo grave relacionado ao homem que ama? Basta revelá-lo de uma vez só, como quem pede para passar o sal durante as refeições.

A opção soa estranha, e inverossímil em determinadas cenas, porém serve para diluir o aspecto melodramático da premissa. A série busca equilibrar todas estas escolhas de forma inconstante, porém competente na maior parte do tempo. A conclusão segue pelo mesmo caminho: após um plano aéreo com pássaros voando e uma bela narração em off, típica do cinema cristão, os minutos finais tratam de fornecer um gancho menos transcendental à segunda temporada. É surpreendente a maneira como O Segredo do Templo conclui sua trama, abrindo-se não apenas ao futuro dos personagens, mas também a um novo passado, ou seja, a um flashback em paralelo com aquele que vemos até então. Trata-se de uma escolha narrativa ousada, e talvez isso corresponda ao que a série possa trazer de melhor, após tantos quiproquós familiares convencionais. A impactante cena inicial, no piloto, não se explica por completo, sinal de que a temporada sequer elucida todos os seus dilemas. Mesmo assim, o projeto nos oferece a seguir a possibilidade de não ver seus personagens depois do fim (típico da sequência), nem antes dos conflitos (típico dos flashbacks e prequels), mas durante os conflitos novamente, numa realidade paralela e alternativa. Em menos de dez minutos, a temporada conjuga Deus e a ciência, a banalidade e a revolução cósmica. Resta saber se conseguirá, na próxima temporada, sustentar tantos tons e estilos, e se possível, sem a sobrecarga de amores, desafetos, casamentos e traições para atrapalhar o percurso.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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