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Sinopse
O Eternauta: Uma tempestade de neve tóxica matou milhões de pessoas. Num contexto ainda mais hostil, o veterano Juan Salvo e um grupo de sobreviventes de Buenos Aires, Argentina, precisarão enfrentar uma nova ameaça invisível. Ficção Científica.
Crítica
Poucas obras carregam tanto peso simbólico quanto O Eternauta. Criada no fim dos anos 1950, essa graphic novel do argentino Héctor Germán Oesterheld é considerada pedra fundamental da ficção científica latino-americana, ainda que não tenha alcançado o mesmo patamar de popularidade de outros clássicos por dialogar com gênero que, à época, parecia estrangeiro ao continente. Assim como Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez – que resistiu por décadas às propostas de adaptação para as telas – esse quadrinho foi durante muito tempo tratado como “infilmável”. Coube à Netflix convencer os herdeiros desse valioso legado, da mesma forma como fez com os guardiões da memória de Ayrton Senna em Senna (2024) e com o próprio Neil Gaiman em Sandman (2022–). A transposição finalmente ganhou forma e, mais que respeitosa à importância original, assume contornos contemporâneos sem diluir sua essência.
A premissa é aparentemente simples, mas guarda camadas que se revelam aos poucos, com sofisticação narrativa. Uma neve desconhecida começa a cair sobre Buenos Aires. Ao invés de provocar deslumbre, ela traz morte instantânea ao toque. Nesse cenário congelado e hostil, os poucos sobreviventes precisam usar trajes especiais para se proteger da ameaça invisível. O avanço do perigo é progressivo, engenhosamente fragmentado, o que faz de cada episódio bloco essencial à arquitetura dramática. Para quem desconhece o material original, a experiência pode ser ainda mais potente: há um prazer singular em ser surpreendido por reviravoltas tão bem engendradas. A tensão se acentua de forma crescente e nunca gratuita.
Ricardo Darín assume o protagonismo como Juan Salvo, homem comum convertido em símbolo de resistência. Ele veste o traje, enfrenta o incerto e parte em busca da filha desaparecida. A estrela argentina, consagrada em dramas premiados, mergulha com desenvoltura no universo sci-fi sem perder a humanidade de seus personagens anteriores, sempre com olhar magnético, sustentando a jornada. A seu lado, o uruguaio César Troncoso, no papel do engenhoso Favalli, se revela peça-chave para equilibrar o intelecto da trama com carisma e presença. Já conhecido por papéis densos e multifacetados, Troncoso se projeta aqui, enfim, como nome pronto ao mainstream mundial.
A adaptação ainda estabelece vínculos profundos com a realidade política e social argentina. Salvo é, no roteiro, veterano da Guerra das Malvinas, conflito utilizado pela ditadura militar como cortina de fumaça para manter o controle do país. Essa reinterpretação confere densidade histórica à narrativa e honra o próprio autor da HQ, desaparecido pelo regime militar argentino junto a quase toda a sua família nos anos 1970. Em uma cena marcante, Favalli comenta: “las cosas viejas funcionan!” (“as coisas velhas funcionam”), em espécie de manifesto contra a mecanização do pensamento. A série, portanto, atua como denúncia e homenagem, carregando no DNA a crítica ao autoritarismo e a valorização da memória.
Mesmo sob o selo de plataforma global, o projeto preserva com orgulho sua raiz local. Tango, mate, fernet, e rock rolinga referências ao futebol pontuam a trajetória dos personagens, sem parecerem folclóricas ou impostas. São detalhes que enriquecem a ambientação, que conferem alma à paisagem pós-apocalíptica e reafirmam que se trata de narrativa autenticamente argentina. A escolha por manter o idioma original e valorizar os costumes locais resulta em mais do que verossimilhança, ela reforça a soberania cultural de produção que, embora planetária, nasce de coração específico e pulsante.
A boa nova é que O Eternauta já tem sua segunda temporada garantida. As páginas da HQ indicam que o mal maior ainda está à espreita, e o que se viu até aqui é apenas o prelúdio de tempestade mais densa. A narrativa, cuidadosamente construída, abre caminho para desdobramentos instigantes, há muito ainda a ser descoberto, enfrentado e, sobretudo, interpretado. Como ecoa a voz inesquecível de Mercedes Sosa, que embala um dos episódios mais sensíveis: “gracias a la vida, que me ha dado tanto” (“obrigado pela vida, que me deu tanto”). Canção que encerra, sem pressa, a travessia do espectador por paisagem em que o fim é só o começo.
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