Crítica


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Sinopse

Desde que sua curta vida como super-heroína acabou de forma trágica, Jessica Jones vem reconstruindo sua carreira e passou a levar a vida como detetive particular no bairro de Hell's Kitchen, em Nova York, na sua própria agência de investigações, a Alias Investigations. Traumatizada por eventos anteriores de sua vida, ela sofre de Transtorno de Estresse Pós-Traumático, e tenta fazer com que seus super-poderes passem despercebidos pelos seus clientes. Mas, mesmo tentando fugir do passado, seus demônios particulares vão voltar a perseguí-la, na figura de Kilgrave, um obsessivo vilão que fará de tudo para chamar a atenção de Jessica.

Crítica

As produções da Marvel em parceria com o Netflix tem gerado algumas das melhores realizações do estúdio até agora. Sem querer desmerecer os longas lançados nos últimos anos, mas a concentração da ação nos personagens urbanos da editora elevou o nível de qualidade nas adaptações de histórias em quadrinhos para grandes plataformas. Tanto Demolidor (2015-) quanto Jessica Jones, as duas primeiras séries lançadas, são histórias coesas, com elenco acima da média e, o melhor de tudo, que tentam responder da forma mais humana possível a questão: o que é ser super-herói? No caso da personagem criada por Brian Michael Bendis no início dos anos 2000, o buraco ainda é mais embaixo, já que Matt Murdock e companhia são conhecidos do grande público há cinco décadas, especialmente após já ter sido adaptado para o cinema (ainda que de forma tacanha) em Demolidor: O Homem sem Medo (2003), produção estrelada por Ben Affleck. Já a ex-heroína e agora investigadora particular interpretada por Krysten Ritter não é uma figura popular, ainda que tenha alcançado um grande sucesso entre os leitores na HQ Alias (que não tem nada a ver com a série estrelada por Jennifer Garner, vale ressaltar) e, posteriormente, quando fez parte dos Vingadores, também nos quadrinhos.

Jessica Jones tem um grande trauma recente e é a partir da fuga disto que a série tem seu ponto da partida. Dona de um escritório de investigações, a personagem sobrevive de forma extremamente básica, o que é revelado por suas roupas e pelo apartamento sem grandes adereços. Fechada, com cara de poucos amigos e sempre com uma resposta sarcástica para evitar contatos íntimos com os outros, ela é quase uma anti-heroína. Vive sempre com uma garrafa de whisky à mão, mas nem por isso deixa de ser competente no que faz. Porém, um caso trazido por pais desesperados em busca da filha que desapareceu vai trazer à tona o passado da protagonista, que envolve um lunático obcecado por ela. Kilgrave (David Tennant) é o melhor vilão da Marvel a aparecer em suas produções cinematográficas e da telinha. Com seu poder de obrigar qualquer um a fazer o que deseja apenas com uma frase proferida, ele não quer dominar o mundo ou se vingar por algum motivo infantil. Kilgrave apenas quer Jessica, a única coisa que ele não consegue ter.

A atmosfera criada nos primeiros episódios já revela o mesmo clima sombrio de Demolidor. Ambientado também na Cozinha do Inferno, o cenário é, tal como ocorre com Wilson Fisk na outra série, cercado pelo medo a Kilgrave, mesmo que ele ainda demore alguns episódios para aparecer em carne e osso. Porém, as referências ao seu nome a seu poder criam um suspense que só vai aumentar após o personagem interpretado brilhantemente pelo ex-Doctor Who David Tennant surgir para atormentar de vez a vida de Jones e quem a cerca. Com uma aparência inofensiva fisicamente, sempre vestindo trajes alto esporte com tons em roxo (uma referência à cor da pele do personagem nos quadrinhos, onde é chamado de Homem-Púrpura), Tennant cria um vilão que desfila entre o humor negro e a loucura total com muita facilidade. Assim, cria-se também um carisma ainda maior pelo personagem, tornando-o o perfeito oposto de Jones com seu comportamento impetuoso.

Por sinal, Krysten Ritter finalmente recebe uma protagonista à altura de seu talento e potencial dramático. Ainda que Jones carregue uma alta dose de humor com suas ironias (o que é bem aproveitado pela experiência da atriz em séries de comédia como Don’t Trust the B**** in the Apartment 23, 2012-2013), seu personagem é sofrido. Com tantas dores internas causadas pelo trauma de ser dominada por Kilgrave no passado, o que a levou a cometer crimes da pior espécie, a personagem não consegue confiar em ninguém. A única que consegue mexer com seus sentimentos é a melhor amiga, Trish Walker (Rachael Taylor). É o medo de ferir os outros que faz Jones se afastar de qualquer um que tente se aproximar, como Luke Cage (Mike Colter), por quem se interessa de forma sexual e, talvez, afetiva. Ritter e a própria série dão ainda mais tons de realismo pela falta da experiência da personagem com seus poderes. Ainda que tenha força sobre humana e capacidade de pular altas alturas (e ter uma “queda controlada”, como a própria afirma), ela evita utilizar estes poderes, tornando as lutas pouco coreografadas como a de seu colega Demolidor e até desengonçadas. Não à toa a própria Trish luta melhor por conta de seu treinamento.

Aliás, a relação de Jones e Trish é um dos pilares do sucesso da série. Criadas juntas desde a adolescência, é inegável a química entre as duas na tela como grandes amigas, ainda que cada uma trate a outra à sua maneira. Rachael Taylor encarna muito bem a personagem, que sempre quis ser uma heroína e espelha em Jones o seu desejo. Rica desde pequena por conta de uma série criada pela mãe inspirada nela mesma (o que até pode lembrar Garota Exemplar, 2014, em alguns momentos), Trish nem precisaria trabalhar, mas apresenta o programa de rádio mais popular da cidade. Fiel à protagonista, está sempre à volta querendo ajudar, mesmo que Jessica recuse muitas vezes. A personagem é inspirada na Felina dos quadrinhos, uma heroína que nunca teve grande apelo popular, mas foi membro dos Defensores, grupo que logo terá série a ser desenvolvida pela Netflix com a participação também de Luke Cage e Punho de Ferro. Ou seja, Trish pode se tornar a sua referência dos quadrinhos mais breve do que imaginamos.

Fechando o elenco principal de personagens femininas fortes, Carrie-Anne Moss surge como Jeri Hogarth, advogada implacável que sempre utiliza Jessica como investigadora de seus casos. Em processo de separação de sua esposa para poder ficar com a secretária, ela transita numa linha moral questionável que pode acarretar graves consequências para a personagem principal. Assim, Jessica Jones se mostra não apenas uma série dirigida e protagonizada por mulheres, como amplifica de forma genial (ainda que discreta) o significado de feminismo nas telas, mostrando que produções estreladas por heroínas são tão boas (ou ainda melhores) que a de seus colegas homens. Em tempos de desenvolvimento de filmes como o da Mulher-Maravilha (2017) – o grande ícone feminista de toda a história das HQs e embarca em junho nos cinemas – e da Capitã Marvel (programado para 2019), esta série se torna um divisor de águas por mostrar personagens que de “sexo frágil” (uma odiosa expressão) nada possuem. Elas são independentes e com poder o bastante para tornar os homens coadjuvantes que precisam de sua ajuda, e não o contrário como estamos tão acostumados a ver nas telas.

Mas, no fim das contas, Jessica Jones é uma super-heroína ou não? A resposta está nas suas inúmeras tentativas de fazer justiça com os atos cometidos por Kilgrave. Se o embate entre os dois é o que move a série, são as ações da protagonistas para levá-lo a se redimir dos seus crimes que constroem o questionamento. Sem estragar surpresas e evitar spoilers, pode-se dizer que Jones realmente tenta de tudo, das atitudes básicas às mais drásticas para evitar a vilania do antagonista. Com 13 horas de duração, divididas em 13 episódios, a trajetória da personagem principal é construída de forma gradual e viciante, entre flashbacks de seu passado (inclusive uma surpresa com o nome Safira) e as investigações do presente, que, a certa altura, entram em choque com o mundo da Marvel nos cinemas, mostrando um outro lado da moeda dos atos de heroísmo do Capitão América e companhia. Mesmo que você não goste de super-heróis, não se preocupe. O que menos se fala aqui é sobre isso, ainda que carregado de referências. Porque, apesar da superforça e da “queda controlada”, Jess é gente como a gente. E, ao fim de tudo, a vontade que dá é de sentar com ela, Trish, Luke e companhia para algumas (várias) doses de whisky. Bem como a própria gosta.

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é crítico de cinema, apresentador do Espaço Público Cinema exibido nas TVAL-RS e TVE e membro da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul. Jornalista e especialista em Cinema Expandido pela PUCRS.
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