Crítica


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Sinopse

Homossexuais habitantes de várias periferias falam a respeito dos preconceitos sofridos tanto por suas orientações sexuais quanto em virtude de suas classes sociais. As perseguições são uma constante nessas vidas marginalizadas.

Crítica

Esta série brasileira mostra a que vem desde o primeiro episódio. Contra uma compreensão da comunidade LGBTQI+ especialmente voltadas aos gays brancos e de classe média, ainda privilegiados pela mídia, o projeto do Canal Brasil nos leva à periferia de Belém, no Pará, para descobrir a vida de Isabella Santorinne e Rafael Carmo. Ela, mulher trans, e ele, homens trans, formam um casal de namorados. É curioso que a narrativa se abra com o desejo heterossexual: afinal, trata-se de um homem apaixonado por uma mulher, pensando inclusive em engravidar e ter filhos. A diversidade de identidades de gênero e orientações sexuais possui tantas nuances que consegue ao mesmo tempo representar algo tão diferente da “família tradicional brasileira”, por envolver duas pessoas transexuais, e tão próxima da sexualidade legitimada pelos conservadores, ao abordar a atração pelo sexo oposto e a possibilidade de casamento e filhos. Além disso, ambos vivem numa cidade considerada particularmente violenta em Belém, mas porém demonstram orgulho de sua localidade, da qual não pretendem sair. A fuga jamais representa uma opção para eles.

É muito interessante perceber o distanciamento com que os protagonistas falam sobre suas histórias. O primeiro episódio de Favela Gay: Periferias LGBTQI+ (2020 - ) não busca “sensibilizar” o espectador no sentido de chocá-lo ou comovê-lo, e sim fornecer elementos de reflexão. Por isso, apresenta uma mulher transexual que já aprendeu a lidar com o preconceito e com os olhares de surpresa na rua (“Eu até gosto”, admite), em paralelo com um homem trans que acaba de obter seus documentos oficiais com o nome social, enquanto vive uma fase avançada do uso de hormônios, visando a cirurgia de redesignação de gênero. Talvez a narrativa se torne ainda mais emocionante por não buscar o choro. Ao demonstrar tamanha resiliência destes personagens diante de um cenário adverso – envolvendo preconceito familiar, rejeição no mercado de trabalho e dificuldade de manter um relacionamento estável – eles transmitem uma superação diária ainda maior do que aquela de habitantes heterossexuais e cisgênero das periferias. A escolha de combinar a identidade LGBTQI+ com a vida em bairros pobres não possui nada de anódino: busca-se não apenas o cruzamento entre diferentes formas de marginalidade como também uma metáfora do espaço segregado refletindo uma identidade segregada.

Apesar do encontro respeitoso e naturalista com os personagens, a direção adota caminhos acadêmicos em termos de linguagem. O documentário desenvolve-se principalmente pelos depoimentos dos protagonistas diretamente à câmera, posicionados num terço do enquadramento, enquanto se desfoca o fundo da imagem. Ironicamente, os espaços da fala importam pouco, ainda que, em se tratando de um retrato periférico, deveriam constituir uma preocupação central. Rafael conversa com a câmera diante de alguns corredores desfocados, que talvez constituam uma universidade ou centro cultural. Ora, qual é a relação do garoto com este local? O diretor Rodrigo Felha acompanha seus protagonistas através de deslocamentos diários pelas ruas, além de uma curta cena no local de trabalho. No entanto, seria importante que a série conseguisse filmá-los em suas rotinas, ou seja, almoçando e jantando, trabalhando ou estudando, conversando com amigos. Enfim, seria essencial que o fetiche do imaginário coletivo pelos corpos e identidades trans, fomentados pela ignorância e o preconceito, fosse diluído por meio da demonstração de uma naturalidade da rotina dessas pessoas. Alguns dos melhores retratos da alteridade são aqueles capazes de compreender indivíduos provenientes de contextos particulares, porém dotados de sentimentos e necessidades universais.

O caráter observacional é reduzido neste primeiro episódio, porém resta torcer para que se desenvolva nos próximos segmentos. A amplitude geográfica e social é obtida da maneira mais literal possível: diversas tomadas de drones revelam a vista aérea das periferias. Ora, talvez a visão panorâmica fosse melhor representada pelas pessoas que Isabella e Rafael encontram diariamente, pelo contato com os vizinhos, pelas entrevistas de emprego. Faz falta encontrar imagens ao vivo destes indivíduos, ao invés de tantos relatos do que lhes ocorreu no passado. Ao menos, Favela Gay: Periferias LGBTQI+ evita o sentimentalismo e a vitimização destes personagens, abordando-os com bem-vindo senso de escuta. O resultado poderia ser mais ambicioso em sua linguagem e seu discurso, porém começa bem ao investigar duas pessoas transexuais articuladas e generosas diante da câmera. Elas não representam uma figura de exceção – não se trata de líderes militantes, nem de figuras exemplares por suas conquistas profissionais -, sendo tratadas com evidente respeito e carinho pela equipe. Na época em que projetos de temática LGBTQI+ são censurados pelo governo, a série adquire relevância ainda maior. Felha desenha uma política do afeto através de um bate-papo amigável, que se recusa a enxergar a população trans pela erotização dos corpos, pelo fascínio exótico da noite e do submundo.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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