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Sinopse

Os órfãos Baudelaire são três irmãos muito inteligentes; Violet é a mais velha, Klaus é o irmão do meio e Sunny é a mais nova, com três anos. Quando seus pais morrem, eles passam a morar com diferentes tutores, e o primeiro é Conde Olaf, que irá tentar roubar a enorme herança deixada pelos pais.

Crítica

Há diversos sabores de pastel e, certamente, você já comeu alguns com recheios dos quais não gosta. Existem os que levam carne moída e um pedaço de ovo; outros têm frango e requeijão; e ainda podemos encontrar os que trazem escondida uma mensagem secreta avisando que um Conde cruel mantém o seu crítico de cinema favorito como refém. Há toda a sorte de pastéis no mundo, porque há toda a sorte de pessoas nele. Mas dentre os tipos, nenhum é mais polêmico do que o com azeitona, pois há quem ame e quem odeie tal fruto, e o seu gosto forte contamina toda a estrutura do salgado, independentemente dos demais ingredientes serem saborosos ou não. Desventuras em Série é como um pastel com azeitona.

O dever deste site é tecer uma crítica sobre a segunda temporada do seriado baseado nos livros de Lemony Snicket (heterônimo do escritor Daniel Handler, também o personagem-narrador vivido na tela por Patrick Warburton), mas, como bem avisaria o autor em seu típico discurso melancólico e autodepreciativo, você está livre para ler sobre qualquer coisa que não envolva um design de produção fascinante, um método de instigar o senso crítico do público mais jovem e uma sucessão de eventos magnéticos, tanto pela criatividade quanto pelo absurdo contido neles. Neste segundo ano, a série pega mais cinco volumes dos treze que compõem a saga dos irmãos Baudelaire, três órfãos herdeiros de uma enorme fortuna, perseguidos por um ator, o Conde Olaf (Neil Patrick Harris), que descobrem-se inseridos numa conspiração maior do que imaginavam em princípio.

Esse universo por onde os protagonistas vagueiam, fugindo do nefasto vilão, não é exatamente como o nosso. Trata-se de uma atmosfera concebida sob a perspectiva daquelas crianças que enxergam as injustiças e as ameaças a que são submetidas com uma roupagem caricata. E se isso já era evidente na primeira temporada, aqui os temas são afinados ainda mais para se alinhar, também, a um recurso kafkiano clássico: o de dar sobriedade à figura central e amplificar o absurdo das demais, no intuito de ressaltar a ideia de como o senso comum pode distorcer de maneira grotesca a realidade objetiva. O casamento é perfeito, pois as crianças, ainda alheias à maior parte dos preconceitos adultosos, tendem a enxergar sem esses filtros – e até por isso normalmente são sinceras de forma incômoda.

E é o design de produção que constrói essa ideia, seja através de roupas e espaços que, apesar de coloridos, estão sempre encardidos e sujos, ou através da própria concepção desses cenários, donos de uma arquitetura angulosa que remete ao Expressionismo Alemão, servindo, entretanto, a composições de quadro cênicas que inspiram a comicidade – é como se o Tim Burton (o da boa época do cineasta) se chocasse com Wes Anderson. O resultado do acidente seria algo parecido com o que vemos aqui. Aliás, é interessante notar como os espaços evocam personalidades próprias e muito distintas, como os prédios em forma de lápide que constituem o colégio interno, fazendo-o parecer um cemitério se visto do céu, ou o luxuoso apartamento da socialite Esmé Squalor (Lucy Punch), todo decorado em motivos risca de giz. São elementos que constroem para o espectador todo um universo em torno dos personagens que habitam esses lugares, já que a maior parte das figuras segue quase sempre unidimensional – o que, é bom enfatizar, não é um demérito, pois isso surge como uma ferramenta narrativa eficiente para demonstrar a visão das crianças sobre aquelas pessoas e suas características proeminentes. Um banqueiro, por exemplo, vai ser um indivíduo apaixonado por burocracia, enquanto uma bullie do colégio tem a voz estridente, faz números musicais sem qualquer motivo e anda com saltos de sapateado fazendo um barulho irritante.

Além disso, o absurdo não se restringe ao vestuário e à composição dos personagens, mas também é a base dos seus diálogos e da lógica que mantêm com aquele mundo. Não apenas ninguém nunca reconhece o Conde Olaf, por pior que sejam os seus disfarces, como também a argumentação das crianças nunca consegue fazer frente à palavra dos adultos, que continua representando uma força física que as impele mesmo a colocar deliberadamente as próprias vidas em risco apenas porque a outra opção seria contestar uma ordem dada pelos mais velhos – o que só fica mais divertido uma vez que o trio surge bem mais à vontade, ofuscando até mesmo o brilho de Neil Patrick Harris, que deveria ser a estrela do projeto.

Além disso, esses elementos tendem a inspirar uma revolta saudável, principalmente para o público mais jovem, já que é uma situação que ataca a falta de pensamento crítico – e prova de vez que essa é a intenção da obra, que dá aos Baudelaire aliados cuja maior arma é o conhecimento, poderosas bibliotecas e expertises que exigem estudo e método científico. Não por acaso, Daniel Handler espalha diversas referências culturais naquele universo: a Árvore do Nunca Mais, que serve de poleiro a um bando de corvos, as “aberrações” do circo que entoam o famoso bordão de Monstros (1932), as figuras gêmeas no fim de um corredor que resgatam O Iluminado (1980). Isso sem contar como, não raramente, incorpora expressões e conceitos dentro da trama, ilustrando didaticamente o que significam: “nós chegamos a um cliff hanger”.

Independentemente disso tudo, porém, Desventuras em Série ainda é dona de uma roupagem esquisita. Não é a todos que agrada a lógica física que possibilita um bebê usar toalhas como paraquedas dentro do fosso de um elevador, ou a um macarrão gigante servir de correia ao motor de um carrinho elétrico. Mas é, afinal, um mundo regido pela imaginação infantil, que entende que essas ideias mirabolantes são os primeiros passos na infância para o surgimento de um adulto criativo e crítico no futuro. Por isso lida com o absurdo e a melancolia como obstáculos, pois busca instigar o raciocínio empírico do público frente ao caos do senso comum.

A história dos três órfãos e do seu terrível algoz pode estar fadada a se tornar cada vez mais estranha e revoltante conforme avança. Por sorte, esse não é o caso para o espectador - uma frase que aqui quer dizer “essa temporada conseguiu superar a primeira, que já tinha sido muito boa, e estamos ansiosos para a terceira (e última) temporada”.

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é formado em Produção Audiovisual pela PUCRS, é crítico e comentarista de cinema - e eventualmente escritor, no blog “Classe de Cinema” (classedecinema.blogspot.com.br). Fascinado por História e consumidor voraz de literatura (incluindo HQ’s!), jornalismo, filmes, seriados e arte em geral.
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