Crítica


8

Leitores


3 votos 9.4

Sinopse

Trinta anos depois do embate entre Daniel LaRusso e Johnny Lawrence, a rivalidade desses dois ressurge quando Lawrence decide retomar sua vida por meio do infame dojo Cobra Kai. Enquanto ele busca redenção, o agora bem-sucedido Daniel, por sua vez, tenta superar os desafios de sua vida sem a ajuda do seu mentor, o Sr. Miyagi.

Crítica

Depois de uma temporada aquém das anteriores (a terceira), Cobra Kai volta aos eixos e ao bom caminho no seu quarto ano. A grande expectativa girava em torno da inédita aliança entre ao arquirrivais Johnny Lawrence (William Zabka) e Daniel LaRusso (Ralph Macchio). Como seus estilos e, principalmente, seus temperamentos quase opostos funcionariam em função de um bem comum? E essa é justamente a questão a ser resolvida nos 10 episódios para que haja alguma esperança contra o dojô Cobra Kai. Não são apenas os anos de rivalidade que ameaçam incendiar a relação entre os protagonistas da série, mas também os seus estilos e filosofias completamente diferentes no ensino do caratê. Johnny é mais agressivo, prega que é preciso atacar sempre e acuar o adversário antes mesmo dele conseguir montar uma estratégia. Seus treinos são rústicos, às vezes aparentemente até colocando os alunos em risco para testar limites físicos e mentais. Já Daniel é o contrário disso, pois defende a serenidade e o equilíbrio íntimo num tipo de luta bem mais reativa que tenta canalizar a impetuosidade do oponente em benefício próprio. Suas práticas estão mais para um estilo zen, com meditações, ponderações e outros expedientes tradicionais. Então, não chega a ser surpreendente que a aliança entre os dois sofra frequentes crises, que seus entendimentos entrem em choque como se isso fosse inevitável.

Mas, quando dito que a quarta temporada de Cobra Kai recoloca as coisas nos eixos é porque retoma como essencial a ideia do espelhamento. Para começar, Johnny e Daniel são mais parecidos do que as evidências apresentam num primeiro momento. Mais do que isso: suas diferenças não são a fraqueza da aliança de ocasião, mas o seu principal trunfo. Os idealizadores da série não prezam por reviravoltas surpreendentes e/ou estudos tão complexos de personagens, preferindo a isso a construção clara de percursos emocionais e dramáticos que convergem para uma ideia geral muito clara de oponência/aliança. Talvez não fosse necessário mostrar tantas rivalidades semelhantes para estabelecer o panorama, mas é realmente um dos princípios do programa ressaltar essa dualidade, bem como acontecia cinematograficamente na saga Karatê Kid. Misturar os protagonistas é receita explosiva, principalmente quando os grandes pupilos de um e outro, Miguel (Xolo Maridueña) e Samantha (Mary Mouser), começam a “trocar de lado”. O menino que se tornou campeão sob os cuidados de Johnny se afeiçoa ao estilo Miyagi-Do, encontrando nele lições valiosas para crescer enquanto lutador e pessoa; o mesmo acontece com a filha LaRusso, que descobre no método Presas de Águia coisas que a auxiliam num processo de emancipação pessoal. Essa paternidade desafiada volta a ser uma das vedetes da série que utiliza a nostalgia organicamente como forma de estabelecer cumplicidade com o espectador. Exemplos disso são as cotidianas discussões sobre os hits musicais dos anos 1980 e a argumentação em favor da aliança entre inimigos mortais utilizando Rocky III: O Desafio Supremo (1982) como parâmetro.

Se há um problema desde que Daniel LaRusso passou a ser efetivamente coprotagonista de Cobra Kai é uma equivalência acrítica da sua paternidade conturbada em relação a de Johnny. Ainda que Daniel tenha obstáculos domésticos, que atravesse dificuldades para dialogar com seus filhos em fase de rebeldia adolescente, ele está longe do drama vivido por Johnny. O oponente de LaRusso sofreu com a ausência paterna e acabou reproduzindo isso, se tornando ele próprio um pai ausente. E a quarta temporada de Cobra Kai dá muito mais atenção às turbulências domésticas dos LaRusso, o que acaba deixando o drama de Johnny em segundo plano, apenas esporadicamente o mencionando. De qualquer maneira, a série segue investindo na importância das figuras paternas para o desenvolvimento dos indivíduos. Os sensei desempenham papel substitutivo quando o modelo caseiro inexiste, está ausente ou não funciona. Não à toa Robby (Tanner Buchanan) gradativamente começa a ter consciência do que está em jogo por adotar o estilo “sem piedade” do Cobra Kai ao ser colocado numa posição de mentoria, ou seja, ao responsabilizar-se pela formação de alguém, no caso do garoto que sofre bullying na escola, cujo sofrimento é uma porta perigosa ao desvio de caráter. E nesta temporada temos a maternidade substitutiva de Amanda (Courtney Henggeler) tentando acolher Tory (Peyton List) como uma nova dinâmica, a única que traça contornos mais visíveis nos abismos sociais.

Ainda dentro dessa ideia da dualidade fundamental, presente desde a saga Karatê Kid, Cobra Kai traz uma dupla como oponente da aliança Lawrence/LaRusso. E ela é constituída dos terríveis John Kreese (Martin Kove) e Terry Silver (Thomas Ian Griffith). Depois do início do tipo “Kreese resgata Terry da letargia”, a relação entre os casca-grossa é mediada pela disputa velada de poder. Se até os 45 do segundo tempo não conseguimos enxergar ninguém mais odioso do que Kreese – numa composição brilhante de vilania de Martin Kove – esse jogo de maldades ganha cores quando compreendemos justamente que o instinto de paternidade preserva resquícios de humanidade no velho combatente de guerra a quem Johnny culpa por parte de sua desgraça. No momento-chave, Terry prova ser ainda mais letal e temível, exatamente porque não tem vínculos emocionais que possam despertar crises de consciência. Além disso, ele é o homem de negócios que tem meios financeiros para expandir os seus domínios, aquele que funciona como um negativo de Daniel LaRusso, já que ambos são economicamente bem resolvidos, ao contrário dos remediados Johnny e Kreese. Por meio desses espelhamentos simples, mas que funcionam muito bem (apesar de serem esquemáticos), a série a todo momento define que as pessoas podem trilhar caminhos muito diferentes, até antagônicos, dependendo das influências, das oportunidades, das vivências e da suscetibilidade à interferência das figuras negativas.

Na quarta temporada de Cobra Kai tudo é expectativa para o torneio que pode determinar a extinção ou a soberania do dojô Cobra Kai. Em meio a isso, a série consegue trazer à tona como personagem relevante o filho de Daniel-san, Anthony (Griffin Santopietro), prova viva de que até mesmo um certinho LaRusso pode se tornar um valentão se tiver as suas fragilidades provocadas pelas forças erradas. O efeito colateral negativo da subtrama que também apresenta as demandas do jovem Kenny (Dallas Young) é aumentar o protagonismo do personagem de Ralph Macchio. Seu núcleo familiar contém mais questões a serem resolvidas. Mesmo assim, o personagem de William Zabka continua sendo alguém cativante pela batalha contra as próprias limitações, por ser o underdog – o “perdedor” de quem não se espera uma vitória – por quem somos constantemente convidados a torcer com fervor. Ele não tem os meios financeiros, tampouco a base paterna oferecida a Daniel pelo senhor Miyagi. Johnny tenta aprender a ser pai com Miguel, inclusive como uma tentativa inconsciente de compensar suas falhas com Robby, o filho biológico. Miguel, por sua vez, se identifica com LaRusso, sobretudo com seu sucesso depois de uma adolescência solitária e pobre. E isso serve de combustível para quando a trama chega às lutas, instantes em que superação, aprendizado e outros ensinamentos se convertem em golpes, reviravoltas, glórias e derrotas. Nessa série ainda ótima, o tatame reflete o que acontece fora dele.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
avatar

Últimos artigos deMarcelo Müller (Ver Tudo)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *