Crítica


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Sinopse

Durante os anos 1960, a homossexualidade estava em processo de legalização no Reino Unido. Jeremy Thorpe é líder do Partido Liberal Britânico e esconde seu relacionamento amoroso com outro homem, Norman. Algum tempo depois, quando seu ex-amante ameaça revelar o caso, Thorpe decide elaborar um plano de ação que, eventualmente, acaba expondo todo o escândalo.

Crítica

Nascido em 1929, Jeremy Thorpe desde cedo demonstrou uma forte veia política. Aos 30 anos era membro do Parlamento Inglês, e antes dos quarenta foi alçado ao posto de líder do Partido Liberal. Tudo indicava que ocuparia o cargo de Primeiro-Ministro em breve, um dos mais jovens nessa posição em toda a História. No entanto, havia uma pedra no seu caminho. E por mais que alguns apressados apontem Norman Scott como esse empecilho, na verdade o que o corroía por dentro era sua homossexualidade nunca assumida. Um viés de sua personalidade que durante toda a sua existência fez questão de manter privado, no armário, negando em qualquer oportunidade, por mais que os fatos tornados públicos apontassem o contrário. O cerne desse debate é abordado com propriedade e objetivo distanciamento em A Very English Scandal, minissérie de apenas três episódios dirigida pelo mestre Stephen Frears e conduzida com sagacidade por dois intérpretes dispostos a defender os tipos que representam: Hugh Grant (Thorpe) e Ben Whishaw (Scott).

Baseada no livro jornalístico “A Very English Scandal: Sex, Lies and a Murder Plot at the Heart of the Establishment” (“Um Escândalo Bem Inglês: Sexo, Mentiras e uma Trama de Assassinato no Coração da Sociedade”, em tradução livre), de John Preston (autor também do recente A Escavação, 2021), a série tem roteiro escrito por Russell T. Davies, e essa é uma observação que não pode passar desapercebida. Afinal, o autor é conhecido como o nome forte por trás de programas como Queer As Folk (1999-2000), Years and Years (2019) e It’s A Sin (2021), todas de forte conotação social, tanto no que se refere ao sexo (e ao caráter LGBTQIA+ dos personagens) como no espectro político. O mesmo ele faz mais uma vez por aqui, mas talvez de modo tão incisivo como nunca antes. Jeremy Thorpe foi um nome de alta ressonância no governo britânico, tanto pelas posições que ocupou, como também pelas causas que defendia: a grande maioria, contrárias à população não-heterossexual. Além disso, tanto ele quanto Norman Scott eram homossexuais, e se um – o primeiro – tanto se esforçou em negar o óbvio, o outro nunca fez questão em disfarçar sua verdadeira natureza. Ambos eram tanto política quanto sexo, e essa mistura aqui surge, como se poderia esperar, com força.

Porém, o espectador que esperar uma abordagem tensa, na linha de um thriller erótico, irá se decepcionar. Na verdade, Frears – indicado ao Oscar pelos dramas Os Imorais (1990) e A Rainha (2006), mas conhecido também por tramas mais leves, como Florence: Quem é Essa Mulher? (2016) e Victoria e Abdul: O Confidente da Rainha (2017) – imprime um tom cômico, como se, diante tantos absurdos, a única solução fosse rir a respeito. Thorpe e Scott de fato tiveram um romance, mas o mesmo não durou, e logo teria ficado para trás, não fosse por um pequeno detalhe: na tentativa de apagar qualquer ligação entre eles – justamente para evitar que o envolvimento entre eles em qualquer momento futuro se tornasse conhecido – Thorpe reteve consigo alguns documentos de Scott (a desculpa dada inicialmente para estarem juntos era a contratação do jovem pelo político em ascensão como uma espécie de secretário). E foi essa “precaução”, que lá pelas tantas se revelou uma atitude infeliz, a causadora de todos os desencontros, ameaças e percalços pelos quais passaram, não apenas juntos, mas, principalmente, um contra o outro.

A questão é que, se por um lado Thorpe tinha algo a esconder, Scott, por sua vez, não tinha nada a perder. Com traumas de infância para carregar consigo, era alguém emocionalmente desequilibrado, e seus julgamentos a respeito de como via as coisas que lhe aconteciam e as relações que estabelecia com aqueles ao redor – o político até foi seu caso mais famoso, mas esteve longe de ser o único – muitas vezes destoavam do modo como os demais encaravam tais situações. Thorpe percebeu essa falta de sintonia entre eles – e, acima de tudo, entre Scott e o resto do mundo – muito cedo. Acostumado a estabelecer envolvimentos às escondidas, por vezes sofrendo abusos e violências, via tais desenlaces mais como uma consequência indesejável, porém inevitável – o homem mais velho tentou se afastar, logo que julgou ser possível, do amante. Mas havia a certeza de não ser pego, a prepotência do cargo que ostentava, e isso o levou a cometer descuidos. Como as cartas repletas de declarações, o fato de terem conhecidos em comum e evidências físicas e materiais de que, de fato, chegaram a formar um casal por algum tempo.

É nesse ponto, porém, que as coisas começam a ficar estranhas. Acreditando ter se livrado do namorado como quem amassa e joga fora um papel velho, Thorpe se impressionou com a determinação de Scott em reaver o que lhe era seu por direito – seus papeis, pois sem eles, não existiria enquanto membro da sociedade, ficando alijado de vários benefícios, como saúde pública, por exemplo. Ao invés de conversarem e, enfim, buscar uma resolução que conseguisse satisfazer ambos, o que se julgava dono do poder decidiu partir para ações drásticas, e chegou, mesmo, a encomendar a morte do ex-amante. Porém, tais recursos se estabelecem através de uma sequência de fatos próxima a uma comédia de erros, com tantas coisas dando errado, umas atrás de outras, como um castelo de cartas que desmorona. O resultado foi que o jovem não apenas sobreviveu, como ficou ciente do que estava se armando contra si. Como a tendência à paranoia já fazia parte do seu ser, foi apenas acentuada. E o caso acabou nos tribunais – e nos jornais. O escândalo, como anunciado no título, ganhou as manchetes e foi discutido à exaustão pelos mais diversos públicos, e os envolvidos nunca mais foram os mesmos.

Talvez o maior problema de A Very English Scandal seja sua curta duração – são apenas três episódios, cada um tendo em torno de uma hora – o que acaba, inevitavelmente, atropelando alguns acontecimentos em nome de algumas soluções mais práticas. Por exemplo, há apenas uma cena de intimidade sexual entre os protagonistas, despendendo mais tempo entre o que lhes aconteceu depois, enquanto que como se estabeleceu o envolvimento deles se dá de forma apressada e resumida. Esses avanços são recompensados por performances hipnotizantes tanto de Hugh Grant como, principalmente, de Ben Whishaw, que não apenas mergulham com determinação nos personagens que tem em mãos, como também os defendem, a despeito de suas contrariedades e posturas polêmicas. É por eles, além do resgate histórico comandado pelas mãos seguras de um cineasta no domínio do seu exercício, que esta é uma minissérie que justifica qualquer olhar mais atento que receba.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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