Já está disponível no Amazon Prime uma nova série brasileira: Manhãs de Setembro (2021), estrelada pela cantora Liniker. Ela interpreta Cassandra, uma entregadora de aplicativos com dificuldade para fazer a carreira de artista decolar. Quando finalmente consegue seu apartamento próprio e se encontra em bom momento com o namorado Ivaldo (Thomás Aquino), recebe a visita inesperada de Leide (Karine Teles), com um garoto que afirma ser filho de Cassandra. A protagonista rejeita o menino, mas aos poucos entende a possibilidade de ser mãe.

Dirigida por Luís Pinheiro e Dainara Toffoli, com roteiro de Josefina Trotta, Alice Marcone e Marcelo Montenegro, a bela série apresenta com grande respeito a vivência de pessoas trans, sem fazer da identidade de gênero, ou da transição, uma temática central à história de afetos. Leia a nossa crítica. Os criadores conversaram com os jornalistas sobre o projeto:

 

Liniker e Thomás Aquino em Manhãs de Setembro

“Poder ver uma travesti que tem casa, tem relações de afeto e trabalho, é incrível”

A cantora Liniker justificou seu interesse por esta história: “O que mais me atraiu no roteiro foi a possibilidade de criar o imaginário real de uma pessoa trans, levando em consideração o país que a gente vive, e todas as violências de uma pessoa trans. Poder falar do ponto de vista do afeto me interessou muito. A Cassandra não está num local engavetado que muitos olhares cinematográficos colocam – em situação de perigo, de violência. Poder ver uma travesti que tem uma casa, tem relações de afeto e trabalho, é incrível. Agradeço muito aos roteiristas por criarem uma personagem tão complexa quanto a Cassandra”.

“É importante um grande canal como o Amazon Prime Video se responsabilizar por essas pautas. Espero que seja a primeira de muitas narrativas onde essas personagens possam ser dignificadas enquanto seres humanos. Nossa responsabilidade social [enquanto pessoas trans] é de sobreviver, e a responsabilidade de quem tem o poder de criar estes projetos, estes olhares, é de empregar estas pessoas e trazer estas vivências”, completa.

Liniker e Gustavo Coelho em Manhãs de Setembro

“Vamos realmente começar a falar de inclusão e representatividade quando a gente entender que indivíduos LGBTQIA+ não são tema de uma produção”

Um dos pedidos de Liniker aos produtores de Manhã de Setembro foi a inclusão de pelo menos uma roteirista transexual dentro da equipe de escritores, para se sentir representada por alguém que conheça sua realidade. Alice Marcone assumiu a função, e comemora o resultado: “Eu, enquanto pessoa trans e preta, assistindo a esse conteúdo, descubro que é possível ser como eu sou. No contexto de hoje, temos uma saúde mental muito complicada. Ver um retrato pautado pelo afeto, pela família, pelo amor, gera esperança, algo de que precisamos muito na sociedade hoje em dia. Isso é importante tanto para pessoas trans se verem em tela, quanto para a sociedade em geral. Essas realidades sempre estiveram muito marginalizadas no imaginário geral, então ao criarmos um imaginário de afeto, criamos inclusão”.

No entanto, segundo a autora, ainda resta um caminho importante a percorrer: “Vamos realmente começar a falar de inclusão e representatividade quando a gente entender que indivíduos LGBTQIA+ não são tema de uma produção. Quando a gente tiver uma protagonista trans numa série de terror que não tem nada a ver com a transição, com a identidade de gênero dela, aí sim estaremos falando de representatividade de fato. No mercado brasileiro, temos muita dificuldade de acessar essas narrativas. Ter diversidade de elenco e equipe em todas as produções é uma estratégia criativa que vai gerar conteúdos novos para qualquer produção. Penso no Jordan Peele nos Estados Unidos, por exemplo. Precisamos entender a importância de ter personagens negros, LGBT em todas as produções, ao invés de transformar isso no tema da série. Esta é uma série sobre família, sobre afeto, não sobre a negritude e a transexualidade. Temos uma virada de chave”.

Liniker em Manhãs de Setembro

“Hoje é possível que uma mulher trans seja protagonista de uma série”

Josefina Trotta, experiente roteirista argentina que trabalha há anos no Brasil, percebe uma transformação da nossa sociedade: “Sou otimista sobre o futuro das séries no Brasil. Quando comecei a trabalhar aqui no país, era um cenário diferente. Agora, o país mudou, o mundo mudou. Hoje é possível que uma mulher trans seja protagonista de uma série. Hoje as salas de roteiro são mais inclusivas, temos vozes que não costumavam se expressar antes. Queria ter salas de roteiro com mais diversidade ainda. Agora queremos ter comédias românticas estreladas por homens trans, filmes de terror estrelados por mulheres trans”.

A preocupação atinge inclusive a dublagem da série em outros países, segundo Malu Miranda, diretora de conteúdos originais do Amazon Brasil: “A complexidade humana é universal. Estamos falando primeiramente da formação de uma família. Manhãs de Setembro ressalta a importância de falar de amor, resiliência, perseverança. Queremos trazer séries e filmes sobre a alegria de viver. Precisamos nesse momento de um ponto de luz. Discutimos a dublagem também: para a gente e para a Liniker, era fundamental que as Cassandras em espanhol, em inglês, em alemão, partissem de uma vivência trans”.

Karine Teles, Gustavo Coelho e Liniker em Manhãs de Setembro

“Esse presidente disse que barraria esses personagens, limitaria a grana dos nossos filmes”

O diretor Luís Pinheiro mantém um posicionamento político muito firme: “Ter uma protagonista preta e trans, nesse momento obscuro do advento da extrema-direita, tem importância. Esse presidente disse que barraria esses personagens, limitaria a grana dos nossos filmes. No Amazon, vemos a liberdade de propor o personagem e a história que a gente quiser. A série avança com a discussão. Não estamos falando da transição, nem do preconceito. Estamos falando de formação de família, de coisas que já são inseridas na vida. Esse projeto nos contamina com esse ar de nos passar a sensação de estar à frente do que estamos vivendo e pensando”.

As dificuldades vão além do governo conservador. A equipe também foi prejudicada pela chegada da pandemia de Covid-19: “A gente estava pronto para filmar em São Paulo, quando veio a pandemia. A série não se passaria numa São Paulo de cartão postal. Precisava ser nos prédios populosos do centro, na multiplicidade de habitantes do centro. Quando veio a pandemia e a possibilidade de filmar no Uruguai, encontramos um conteúdo modernista e brutalista que também existia em São Paulo. Conforme vi mais fotos do local, percebi que lá caberia Havana, Montevidéu etc. O centro de São Paulo é múltiplo. Filmamos em Montevidéu com uma tranquilidade incrível. Buscamos o belo e o pertinente, com texturas que convinham à nossa cidade, sem a necessidade de inserir o Copan, por exemplo. Trocamos todas as placas, inserimos um ou outro prédio. Fizemos só duas diárias em São Paulo, uma de aéreas, e outra com a moto andando pelas avenidas. O Uruguai nos recebeu de braços abertos. Mesmo assim, gostaria de filmar em São Paulo, ajudar nossos técnicos aqui. Levamos algumas pessoas para lá, mas em tempos como esse, teria preferido filmar no Brasil, até para ajudar os profissionais aqui”.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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