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Sinopse

Três histórias de amor nos confrontam à possibilidade de sermos substituídos no amor: na primeira, uma modelo descobre que sua melhor amiga está saindo com o empresário por quem já foi apaixonada; na segunda, um estudante universitário desafia a namorada a seduzir o professor de literatura, e na terceira, uma jovem lésbica reencontra o seu amor de juventude numa reunião do colégio - ou seria apenas uma mulher parecida com ela?

Crítica

“Olhos nos olhos, quero ver o que você faz / Ao sentir que sem você eu passo bem demais / [...] / E tantas águas rolaram / Quantos homens me amaram / Bem mais e melhor que você”. A canção de Chico Buarque vem à mente diante de um filme como Roda do Destino (2021). O diretor Ryusuke Hamaguchi possui um fascínio pela questão da subjetividade: o que faz da minha história de amor única? O que me garante que outra pessoa, depois de mim, não poderá amar meu/minha parceiro(a) exatamente da mesma maneira do que eu? Em Asako I & II (2018), ele imaginava uma garota apaixonada por dois homens de aparência idêntica, ainda que opostos em personalidade. Nesta nova produção, investiga três histórias distintas, centradas na questão dos duplos e das repetições cíclicas. Em “Magic (or Something Less Assuring)”, uma jovem descobre que sua melhor amiga está saindo com um homem por quem já foi apaixonada; em “Door Wide Open”, uma estudante universitária aceita a aposta do namorado de seduzir o professor de filosofia, e em “Once Again”, uma mulher lésbica acredita reencontrar nas ruas o seu amor dos tempos de escola, até perceber que se trata de uma mulher parecida com ela.

Em todas as histórias, o dilema se repete: somos de fato especiais, singulares? As marcas que deixamos nos outros serão eternas, ou corremos o risco de ser esquecidos pelas pessoas que mais amamos? De certo modo, o cineasta japonês demonstra obsessão com a morte e a temática de nosso legado. O cinema constitui a arte ideal para este tipo de reflexão, graças a seu caráter “embalsamador”, capaz de reter sentimentos e fatos no tempo (ainda mais do que a fotografia, graças ao movimento e à montagem; mais do que à pintura, pela proximidade da objetiva com o olho humano; e mais do que a literatura, pela construção visual). Talvez os personagens de Hamaguchi sejam esquecidos e confundidos; no entanto, durante algum tempo, eles se uniram diante das câmeras. Dentro da ficção, estes breves amores de juventude permanecem eternos, o que se estende aos reencontros furtivos na rua, dentro do ônibus e nos corredores da universidade. O artista busca uma maneira de preservar sentimentos no tempo, ciente de sua empreitada utópica: o tempo há de corroer as pessoas, os amores, as memórias e as películas (ou arquivos em HD).

Estruturadas de maneira independente, as histórias formam um conjunto coeso pela temática, ritmo, a duração e organização interna. Cada média-metragem se inicia com uma conversa amistosa que evolui para a dúvida de ordem amorosa, e a tentativa desesperada de reviver um caso do passado (ou, pelo menos, descobrir se o amante de antigamente ainda nutre sentimentos). Há buscas tão genuínas (a mulher apaixonada pela ex-namorada) quanto egoístas (a atriz interessada em saber que é melhor do que a colega), porém todas espontâneas e inconsequentes. Acompanhamos um dia especial na vida destes personagens, embora incapazes de mudar suas rotinas ou relacionamentos presentes. As heroínas se encontram presas num passado de conjecturas: “E se eu não tivesse terminado? E se eu não tivesse traído? E se a gente ainda namorasse hoje?”. O roteiro desenha uma ruminação psicológica tão torturante para os protagonistas quanto melancólica para o espectador. Na costura fina entre as histórias, o diretor impõe a si próprio outros obstáculos, pelo prazer de fazê-lo: cada história passa pela mesma construção em Tóquio, versando sobre o sexo e oferecendo algum salto no tempo.

Por trás da aparente simplicidade, a direção oculta uma sofisticação primorosa no tratamento de tempos e espaços. O cineasta trabalha com enquadramentos fixos e planos de conjunto, efetuando zooms violentos quando necessário (semelhantes à cartilha de Hong Sang-soo, diga-se de passagem). No entanto, os espaços são transformados pelo sentimento amoroso: uma casa rica em Tóquio aparenta ser o lar da ex-namorada, para se tornar então a casa de uma desconhecida; o escritório de professor possui um caráter neutro e público quando tem as portas abertas, porém erótico e privado quando a porta se fecha; um escritório transita entre um espaço impessoal e um local de sedução quando se descobre que o personagem mora no andar de cima. As personagens de Roda do Destino roubam beijos de pessoas no ônibus e falam sobre masturbação diante de um corredor repleto de pessoas. A cidade é revestida de pulsão libidinal, seja pela narração erótica diante de um motorista de táxi ou um encontro elétrico nas escadas rolantes. Esta transformação ocorre por meio de diálogos impecáveis, porque inocentes à primeira vista, até se revestirem de uma progressiva carga de sentimentos (amor, ódio, rancor, desejo).

Os três segmentos oferecem embates civilizados nos quais jamais se sabe ao certo quem possui o controle sobre quem – e o domínio se inverte algumas vezes, graças à inteligência do texto. Hamaguchi aborda estes quiproquós com uma leveza terna e jocosa, permitindo o humor patético, do desconforto e do absurdo. Dentro do registro realista, cada história se transforma de tal maneira que se assemelha a uma fábula sem moral definida. A este propósito, os episódios se encerram de maneira aberta, em estrutura que, dentro dos padrões literários, corresponderia ao conto, ou eventualmente à crônica. O filme possui o bom humor de conceber uma sociedade onde as pessoas voltaram a viver off-line, sem internet nem celulares, e onde os estranhos ainda convidam uns aos outros para as suas casas. Além das substituições amorosas, o cineasta se preocupa com a substituição das gerações: o tempo em que vivemos seria melhor do que aquele de nossos antepassados? Somos mais felizes hoje do que eram os nossos pais? Com trilha sonora leve e atuações perfeitamente calibradas entre o drama e o humor, o filme aprofunda seu estudo da singularidade humana pela percepção do agora. Para isso, relembra o passado, imagina o futuro, revira a memória emocional e planta sonhos, lembranças, desejos. Este é um cinema em busca constante de um lugar de pertencimento.

Filme visto online no 71º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em março de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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