Crítica


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Sinopse

Um detetive interroga um macaco suspeito de assassinato.

Crítica

Quem mais poderia fazer uma homenagem perturbadora ao cinema noir, em formato curta-metragem, mostrando certo detetive interrogando um macaco acusado de homicídio, senão David Lynch, celebrado cineasta que constantemente, durante sua incontornável carreira, fez dos clássicos modelos hollywoodianos matérias-primas de subversões paradoxalmente reverenciais? Sim, pois, novamente, ele pega um formato cristalizado no imaginário cinéfilo, incluindo o dele próprio, e, a partir de alguns elementos de seu cânone, constrói algo que comporta a inclusão do absurdo e do imponderável. Dos longas-metragens de Lynch, talvez Veludo Azul (1986), especificamente o seu aceno ao gênero pautado por detetives charmosos, loiras fatais e tramas repleta de níveis subterrâneos, seja o que mais se comunica com este ótimo What Did Jack Do?.

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A trama vai se desenrolando à medida que os questionamentos do homem da lei (vivido por Lynch com uma evidente intencionalidade beirando o cartunesco) coloca o macaco Jack contra a parede, de modo perspicaz diminuindo seus eventuais espaços de escape, rumando à verdade sobre o assassinato que provavelmente tem motivações passionais. A encenação é bastante simples, basicamente uma alternância de plano e contraplano, sendo essencial ao teor hipnótico da história o entrelaçamento dos diálogos, muitas vezes caricaturalmente mordazes, noutras estranhamente engraçados pelas citações de ditos populares e/ou sentenças banais. Em dado momento, por exemplo, o inquisidor, a fim de encurralar o suspeito, diz: “eu sei porque a galinha atravessou a rua”, mantendo seriedade ao mencionar uma anedota conhecida, assim refinando o ridículo.

David Lynch encarna com gosto uma figura absolutamente decalcada daqueles detetives particulares do noir, cujos discursos são tão intimidadores justamente porque se intui, a partir de suas retóricas, que o condutor da dinâmica está sempre um passo adiante, apenas indagando para saber se as respostas vão bater com uma verdade previamente conhecida. Como de costume nos filmes do cineasta, o som é muito importante, bem como a noção de artificialismo plenamente integrada a uma conjuntura diegética que comporta qualquer coisa. Lynch sustenta que ao cinema não é uma transgressão da normalidade um macaco falante discorrendo sobre seu relacionamento com uma galinha, pois ele geralmente trabalha a ausência dos limites, então apenas facultados à realidade, mas inexistentes no tracejar de narrativas ficcionais que valem o quanto impactam.

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What Did Jack Do? é, ao mesmo tempo, uma reafirmação dessa onipotência do cinema, algo que David Lynch ratificou durante toda a sua trajetória inclinada às circunstâncias incomuns – vide os cadáveres que teimam em não cair, de Veludo Azul, e as músicas que continuam tocando, ainda que sem orquestra, de Cidade dos Sonhos (2001) –, e uma carta de amor à Hollywood da Era de Ouro, inclusive vide a lindíssima (e inquietante, em semelhante medida) cena do número musical. Pelo teor das conversas, principalmente em virtude da forma como o detetive acossa o interlocutor, não é difícil prever a culpabilidade verificada adiante. O que assevera o impressionante frescor de um olhar substanciado pela vontade de transcender fronteiras, assim como um desejo de continuar mostrando o cinema (a arte) enquanto estância (quiçá a última) à qual é possível tudo, é a intensidade da retroalimentação entre a veneração e a bela capacidade de ressignificação.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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