Crítica


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Sinopse

Os Estados Unidos registram números crescentes de suicídio, especialmente em vítimas de bullying, homofobia, transfobia, depressão e em militares com estresse pós-traumático. O documentário busca compreender o fenômeno, e principalmente as maneiras mais eficazes de lutar contra ele.

Crítica

Diante de um caso de suicídio, o imaginário popular costuma se voltar à questão dos motivos. “Mas por que ele se matou, se era tão jovem?”. “Mas não era para tanto!”. “Mas dava para resolver de outra maneira!”. “Mas existem tantos motivos para viver...”. A racionalização de um gesto tão brutal quando o suicídio consiste num esforço contraproducente. Primeiro, ela impede a empatia, ou seja, não permite que se coloque de fato no lugar da outra pessoa. Nunca haverá apenas um motivo, nem uma relação linear de causa e consequência. A psique humana é complexa demais para ser resumida a um único estopim. Segundo, ela nos coloca em posição de distância e de superioridade em relação ao suicida: o indivíduo teria morrido desnecessariamente, por fraqueza ou covardia, devido à incapacidade de lidar com problemas que todos os outros enfrentam diariamente. A moralização do processo leva a sentimentos de culpa, raiva, abandono, e apenas dificulta o processo, enquanto o restringe à esfera individual. Segundo este ponto de vista reducionista, o suicídio se traduziria numa questão de índole e de boa vontade: pessoas se matam, mas não deveriam fazê-lo. A constatação dos fatos se torna insuficiente para a evolução do debate.

Um dos aspectos mais interessantes de Wake Up: Stories From the Frontline of Suicide Prevention (2020) consiste na inserção do tema na esfera de saúde pública, ao invés de um conflito individual. Casos pontuais são utilizados pelo diretor Nate Townsend a título exemplar, porém tomando o cuidado de interpretá-los enquanto universais. O filme menciona situações que tornariam pessoas mais propensas a tirarem a própria vida, porém se concentra desde o começo nas maneiras de combater o fenômeno particularmente grave nos Estados Unidos. Como controlar o suicídio, tema sobre o qual ninguém quer falar? Como nos confrontar à evidência de que o poder aquisitivo não se traduz em felicidade, sem criticar a própria estrutura capitalista? A direção mergulha numa investigação surpreendentemente pragmática para tal tema. Discute-se o papel das diferentes terapias, dos prontos-socorros de hospitais, os atendimentos telefônicos, o tratamento de veteranos de guerra vítimas de Stress Pós-Traumático, o acolhimento de jovens LGBTQI+ rejeitados por suas famílias, a conexão evidente entre o porte de armas e as tentativas de suicídio. Townsend pula a fase de “lamentar o problema” para discutir os melhores métodos de tratá-lo. Assim, desmistifica a imagem do suicida enquanto pobre vítima ou indivíduo fraco.

O processo de desmistificação resulta em outro aspecto positivo do projeto. O diretor se concentra menos nos suicídios efetivos do que nos sobreviventes, retratando estas pessoas muito parecidas com qualquer um de nós. Uma artista lésbica, com histórico de depressão, fotografa sobreviventes em imagens frontais e ordinárias, trazendo rostos que não ostentam uma expressão particularmente triste. Familiares de vítimas de suicídio narram a surpresa após o ato, enquanto outros declaram que os parentes mortos tinham planos para o futuro e ostentavam uma aparência saudável. Existe notável esforço em afastar o estereótipo da pessoa explicitamente depressiva. Ao mesmo tempo, não se associa a figura do suicida a famílias negligentes ou violentas. Talvez o exemplo mais frontal e curiosamente eficaz desta abordagem provenha da comparação com os acidentes de carro. Uma especialista relembra que, décadas atrás, a prevenção às mortes na estrada se dava através de cursos para melhorar as habilidades do condutor. No entanto, os números só caíram drasticamente quando se implementaram cintos de segurança, air bags, novos códigos de trânsito, sistemas de monitoramento e multas. Com o suicídio, o processo deveria ser semelhante: previne-se o acesso aos meios que permitem o ato, ao invés de contar com a longa e custosa melhoria da saúde mental das vítimas.

Apesar de tamanhas qualidades discursivas, o documentário é prejudicado pelas encenações de episódios narrados. A cada história descrita durante uma entrevista, o filme fornece reconstituições análogas àquelas empregadas em telejornais policiais. Adota-se uma estética pavorosamente kitsch, que não deve nada aos piores momentos de telenovelas melodramáticas: cenas inteiras em câmera lenta, pianos tristes se intensificando durante as catarses, pessoas gritando ou chorando copiosamente dentro de casa, atuações exageradas ao limite do cômico. Todo o esforço em retirar do suicídio o seu pathos é minado por estes instantes, que pelo menos não contaminam o restante da estética. Se optasse por construções mais criativas e menos referenciais, o projeto proporcionaria um debate muito sóbrio, porque distanciado da necessidade de chocar ou emocionar. O cinema, especialmente aquele de vocação humanitária e educativa, precisa encontrar outra linguagem para representar o respeito para além da combinação de câmera lenta, pianos dedilhados, violinos melancólicos e letreiros solenes. Cada vez que estes recursos ocupam a imagem, um aspecto institucional e/ou religioso toma conta do discurso e sabota a abordagem sociológica oferecida até então.

O saldo é positivo: Wake Up: Stories From the Frontline of Suicide Prevention aborda o tema de modo adulto e politizado, responsabilizando o porte de armas e o preconceito contra LGBTs pelo alto índice de suicídios, enquanto questiona o papel do Estado no bem-estar dos militares quando retornam das guerras. Ao mesmo tempo, proporciona conversas bem produzidas e filmadas, em estilo fluido de montagem. Seria fácil para Townsend articular blocos autônomos sobre casos de suicídio, justapondo um caso ao próximo. No entanto, cada história retorna diversas vezes, entrecruzando com as demais e permitindo que um caso enriqueça o outro. O diretor toma a precaução de ouvir pessoas brancas e negras, idosas e jovens, heterossexuais e homossexuais, cisgênero e transgênero, liberais e progressistas, para obter um recorte abrangente dos Estados Unidos atuais. A conclusão, como esperado, reforça o tom de pesar, aumentando o som da trilha sonora, os discursos inspiradores e as informações didáticas em tela. Seria justo dizer que o filme se assemelha a um vídeo institucional para associações de combate ao suicídio. No entanto, insere a sua luta dentro de um vasto contexto sociopolítico, algo indispensável para aprofundar o debate.

Filme visto online no We Are One: A Global Film Festival, em junho de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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