Crítica


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Sinopse

Ellie nunca teve um bom relacionamento com a família. Mas quando a avó morre, ela decide voltar à casa onde cresceu antes que seja vendida. Entre caixas de papelão e cômodos desgastados pelo tempo, a jovem grávida reencontra a mãe e o pai, que insistem em permanecer no imóvel durante a visita dela. Ellie começa a se relembrar de traumas passados, principalmente envolvendo Cara, a irmã falecida num misterioso acidente durante a infância.

Crítica

À primeira vista, este filme de terror se assemelha a centenas de produções anteriores a respeito de casas mal-assombradas. Uma pessoa visita a propriedade (ou a reencontra, depois de muito tempo), confrontando-se a traumas do passado. Aos poucos, a protagonista descobre, junto ao espectador, os horrores que ocorreram naqueles cômodos, enquanto sofre com visões, lembranças perversas e sombras perturbadoras atravessando os corredores. Os fantasmas mantêm a predileção por locais gigantescos e envelhecidos, ao invés de quitinetes no centro da cidade ou apartamentos modernos com varandas gourmet. Vozes do Passado (2020) abraça o imaginário popular, especialmente em se tratando de uma heroína grávida como Ellie (Emma Draper). Nestas premissas, mulheres grávidas se transformam em figuras frágeis e hormonais, propensas a alucinações, crises de ansiedade e distorções do real. O rancor dela em relação aos pais também se presta às narrativas de dores recalcadas que voltam à superfície durante a viagem. O espectador se prepara então para os sustos e efeitos sonoros típicos das aparições de fantasmas, demônios, bruxas ou equivalentes. Nota-se o prazer em partir de códigos reconhecidos, utilizados à exaustão pela produção industrial.

Entretanto, o filme não demora se distinguir da média do horror situado em mansões fantasmagóricas. Em primeiro lugar, os personagens e a câmera permanecem presos no casarão durante a trama inteira. A separação entre o exterior comum e o interior perigoso costuma ser fundamental aos roteiros do tipo, porém o diretor Jake Mahaffy insiste que o espectador tenha uma experiência de imersão completa nesta geografia labiríntica. É difícil saber quem se encontra na sala ou na cozinha, e qual trajeto precisa ser efetuado entre um e outro. A angústia decorre do trabalho vertiginoso dos espaços: a jovem observa um cômodo escuro, e dentro deste plano subjetivo, enxerga a si própria no quarto. Adiante, a professora universitária percebe o vulto da irmãzinha morta no quarto ao lado. A montagem brinca de planos e contraplanos, adotando inclusive o ponto de vista da assombração, observando a visitante. Quantos filmes de terror permitem ao público enxergar o real pelos olhos do sobrenatural? Outro fator essencial decorre da constituição desta casa: ao contrário das principais obras do gênero, o grande imóvel jamais é apresentado de modo assustador. Esqueça os planos noturnos com gelo seco ao redor da propriedade e a luz de alguma janelinha acesa: para o diretor, este seria um lar banal. 

Vozes do Passado deve ser apreciado ou rejeitado pelos mesmos motivos, no caso, a confusão de sentidos. Ao invés de plantar pistas do mistério rumo à revelação, onde todas as peças se encaixariam, o cineasta prefere manter ambiguidades e sentidos duplos. Chegada a conclusão, o espectador ainda terá dúvidas quanto ao que realmente ocorreu entre Ellie e a irmã Cara (Ava Keane) na infância, sob os cuidados da ambígua Ivy (Julia Ormond), uma mãe tão protetora quanto sufocante. A linha entre a realidade e o delírio se borra de maneira permanente: algumas atrocidades soam possíveis apenas num mundo fantástico, sendo compatíveis talvez com a psique fragilizada da mulher confrontada a um doloroso episódio do passado. O longa-metragem alimenta significados amplos, costurando numa única cena presente e passado: a Ellie contemporânea passeia pelos corredores, e ao avistar um cômodo entreaberto, percebe-se no passado. As manchas pretas que a perseguem são explicadas tanto pela ciência (“O corpo de uma mulher grávida sofre transformações”) quanto por fatores sobrenaturais (a mancha remete à morte, adquire a forma de um cordão umbilical ou de um inseto). Evitando a posição de vítima, Emma Draper constrói a heroína por uma perspectiva combativa, de voz grave e falas brutas. A disputa com a mãe ocorre de igual para igual — é difícil determinar o opressor e o oprimido neste caso.

Infelizmente, algumas fragilidades impedem o belo filme de ir ainda mais longe em sua distorção do real. A construção de Ivy no passado, com uma peruca falsa, quebra a imersão de cenas tensas, o que também vale para a figura do pai envelhecido no presente. O roteiro tem dificuldade de ocupar ao longo do filme este senhor fundamental aos conflitos de Ellie. A importante sequência envolvendo o vaso de cristal se repete a ponto de perder sua força, enquanto o festival de imagens distorcidas em ângulos diagonais, na conclusão, banaliza uma tensão potente por si própria. Ao menos, Mahaffy adota um gesto de direção sem meios-termos, evitando atenuar confrontos para agradar a um público amplo. A configuração asfixiante da casa, tomada por estampas florais nas paredes, cortinas e roupas, cria um aspecto de sonho; já a brincadeira com as caixas de papelão contendo itens diferentes de suas etiquetas aprofunda o teor de enlouquecimento compartilhado com o espectador. A decisão da montagem de apresentar a morte numa fração de segundos, em algo próximo da mensagem subliminar, constitui outra aposta ousada. Eficazes ou não, estas escolhas denotam a vontade de criar tensão via linguagem cinematográfica, em oposição a meros artifícios de texto e de efeitos visuais.

Por final, o projeto deve seu sucesso à construção de um drama eficaz, antes de enveredar pelos caminhos do terror. Temos acesso à psicologia destes personagens, aos seus desejos para o futuro e modos de agir antes que a fantasmagoria os atinja. O mundo exterior será bem representado, metaforicamente, pelo carpinteiro e pelos slides de história da ciência, que remetem à formação acadêmica da heroína. Rumo à conclusão, uma das múltiplas interpretações oferecidas ao espectador estabelece uma ligação perversa entre a paixão da filha pelos estudos e as práticas obscuras de outro membro da família — psicanalistas devem se deliciar com certos acontecimentos do último terço. Em especial, o diretor enxerga uma maternidade opressora e grotesca. Ele rejeita a suposta “vocação natural” das mulheres ao cuidado dos filhos, criando uma trinca de relações tóxicas de filiação — de Ivy com Ellie, e de Ellie com o bebê em seu ventre. Um fator incômodo da narrativa, e cinematograficamente instigante, decorre da sugestão de que a criação (artística e gestacional) implica num ato simultâneo de cuidado e agressão: a mesma mãe que nos cria com amor será aquela que trará nossos principais traumas de vida. Neste sentido, o terror monstruoso dialoga muito bem com as angústias comuns da gravidez.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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