Crítica


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Sinopse

Hasna e Mariam são duas irmãs criadas dentro de um lar violento nas periferias de Paris. Acolhidas diversas vezes por assistentes sociais, são encaminhadas a famílias diferentes e se perdem de vista. Hasna cresce repleta de rancor e tristeza, dentro de uma França cada vez mais intolerantes com indivíduos árabes. Ela encontra uma alternativa radical para canalizar sua revolta contra a sociedade.

Crítica

Em primeiro lugar, é importante informar que Você Parece Comigo (2021) aborda a história da primeira mulher-bomba da França. Este fato particular interessou à diretora Dina Amer e a levou a pesquisar a trajetória de Hasna Aït Boulahcen. No entanto, para o espectador que assistir ao drama sem saber desta informação, poderá acreditar que se trata do percurso de duas garotinhas negligenciadas na periferia de Paris. A cineasta guarda a informação do atentado para as cenas finais, na forma de uma revelação ao espectador. Através desta estrutura, ficcionaliza a narrativa baseada em fatos, afinal, pressupõe que o atentado seja um detalhe na vida da heroína, ao invés do ponto rumo ao qual todas as cenas convergem. O fato de esconder sua carta principal na manga faz com que o projeto fetichize o ato de violência, convertido em clímax inesperado para o prazer dos olhos alheios. O anúncio deste desfecho no início retiraria seu impacto narrativo e levaria o público a questionar, desde o princípio, os motivos pelos quais a mulher francesa teria cometido tal ato. Pela estrutura adotada, o ataque terrorista impede reflexões por parte do próprio filme: uma vez ocorrida a explosão, o longa-metragem se encerra. Caberá ao interlocutor tirar as conclusões que quiser - algo um tanto perigoso, em virtude da complexidade do tema.

A cineasta possui uma tese clara a respeito do caso: Hasna foi o fruto de um lar agressivo; da separação da irmã mais nova pelo Estado francês, que as colocou em casas diferentes; da xenofobia e da falta de oportunidades em um país onde a extrema-direita cresceu de modo perigoso (pôsteres de Marine Le Pen estampam os muros da cidade). Amer nunca julga moralmente sua protagonista, partindo do pressuposto que inúmeros atos de agressão, da precariedade financeira à prostituição, levaram-na a se radicalizar. O extremismo religioso é colocado numa perspectiva maior, estimando-se que floresce em locais de profunda desigualdade de oportunidades e descaso pelos pobres. Em outras palavras, o discurso abraça o determinismo: Hasna se uniu ao primo radical porque foi abandonada pelo resto da sociedade, tornando-se fruto direto de seu meio. A hipótese, válida e provocadora, atingiria resultados relevantes caso o roteiro permitisse a Hasna ter instantes de hesitação, dúvida, de expressão metafórica do sentimento de abandono. Ora, o caminho da jovem dentro da religião progride de maneira mecânica e velocíssima: ela descobre a existência do primo jihadista, entra em contato com ele, apaixona-se, passa a usar o hijab e integra os planos violentos em questão de dias. Amer tem pressa, e nessa montagem bruta, perde a oportunidade de discutir com nuances o fenômeno da jihad.

Na tentativa de pavimentar um caminho extremo, o drama exagera nas cenas de infância até atingir um maniqueísmo reducionista. A mãe de Hasna e Mariam se converte numa vilã impiedosa; todos os homens ao redor da jovem são abusadores perversos ou pais ausentes (ou os dois); e a pobreza se ilustra em cenas nada sutis das garotinhas defecando ao pé da Torre Eiffel. Assistentes sociais ganham uma aparência desumana; famílias de acolhimento encarnam a burguesia xenofóbica com o sadismo de vilões de telenovela; as multidões se mostram impiedosas e individualistas. Hasna não é a única a demonstrar raiva desmesurada contra o sistema: a própria cineasta pinta a sociedade de maneira alarmante. É claro que há inúmeros problemas a apontar, porém eles precisam ser colocados em contexto, investigados por suas origens, desenvolvimento histórico, pertinência à política institucional. O ato de simplesmente denunciar o descaso em relação a descendentes de muçulmanos funciona menos como um aviso importante do que uma obviedade apolítica. Amer parte do pressuposto que, para o público se identificar com a mulher-bomba, o ambiente precisa ser exageradamente hostil. Ora, isso implica dizer que, caso os coadjuvantes ganhassem um tratamento humano, a atitude da heroína seria indefensável. Age-se como advogado de defesa da personagem real, em oposição a um pesquisador interessado nas circunstâncias do episódio.

Na esteira de escolhas agressivas, Você Parece Comigo opta por usar três atrizes no papel de Hasna adulta: Mouna Soualem na maior parte da trama, Sabrina Ouazani ocasionalmente, e a própria cineasta para os diálogos em árabe. Baseada no fato que a mídia noticiou o atentado com fotos de três mulheres diferentes, apelando ao estereótipo e à desinformação do público para estigmatizar o povo muçulmano, a autora faz uma interpretação óbvia das múltiplas personalidades. Entretanto, ao invés de se completarem em cena - uma atriz fornecendo a fragilidade que outra não possui, por exemplo -, elas se sucedem a esmo, no interior dos planos. O filme utiliza um bizarro recurso de transformação digital dos rostos, atribuindo aparência robótica e artificial à protagonista, algo que prejudica a imersão do espectador. Hasna lava o rosto no banheiro enquanto sustenta a aparência de Soualem, mas quando passa a toalha, torna-se Ouazani, e mais uma passada de toalha, volta a portar os traços de Soualem. Mesmo a criança sofre esta intervenção digital, deformando seu rosto. Longe de definir uma identidade, Amer prefere borrá-la, literalmente, expandindo a situação da heroína àquela de tantas meninas de origem magrebina. Um simples corte da montagem para a alternância de atrizes (caso de Palíndromos, 2004, ou Esse Obscuro Objeto do Desejo, 1977), teria sido menos invasivo do que a monstruosidade em pós-produção.

Além dos questionamentos éticos e morais durante a narrativa, o final suspende abruptamente a ficção para introduzir uma sequência documental. A câmera visita a mãe real de Hasna, além da irmã e o pai. Ela revela fotografias da verdadeira personagem e percorre os apartamentos verídicos com a abordagem sensacionalista de um programa de televisão. As falas não trazem nenhum dado relevante (“Ela era uma garota cheia de vida, todos gostavam dela”, repetem os testemunhos), mas servem para comparar a representação ao referente. Em paralelo, possuem um incômodo valor retórico na tentativa de comprovar a veracidade do gesto. Neste instante, o longa-metragem assume a insuficiência de sua construção fictícia, e a necessidade de preencher suas lacunas com o real. Amer ainda se presta a uma cena ficcionalizada com a verdadeira Mariam levando flores ao túmulo da irmã, numa sequência grosseira em termos de respeito às pessoas envolvidas e de uso da linguagem cinematográfica. Por fim, o projeto adota um teor sensacionalista e explorador a partir de fatos graves, apresentando-os de modo chocante e piedoso ao espectador. Por este fator, o resultado pode ser instrumentalizado tanto pelos setores progressistas, enxergando a dificuldade da população de origem árabe, quanto pelos grupos reacionários, a quem a morte de Hasna aparecerá como o destino inevitável a um grupo aparentemente desumano por natureza.

Filme visto na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em novembro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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