Crítica


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Sinopse

Cansada do trabalho exaustivo numa fábrica de tecidos, Vitória decide reunir as colegas operárias e organizar uma greve contra os donos da empresa.

Crítica

Uma fábrica de tecidos. Somos apresentados primeiro à infinidade de máquinas barulhentas, frenéticas e ininterruptas, lado a lado. Elas parecem funcionar sozinhas, visto que o primeiro rosto humano demora a aparecer. O diretor Ricardo Alves Jr. acredita que a compreensão da vida de Vitória (Rejane Faria) e de suas colegas de trabalho passa necessariamente pela imersão neste espaço cinzento, e ao mesmo tempo impecavelmente bem fotografado. Haveria maneiras de deixar o cenário mais inóspito aos olhos do espectador, ou talvez embelezá-lo com luzes artificiais, porém a direção de fotografia busca um olhar muito cuidadoso, com um misto de distanciamento e assombro. Cada plano possui linhas e geometrias internas, recortes de máquinas e corredores, luzes neon e luzes naturais enriquecendo-se para formar uma sequência deslumbrante de imagens. Nenhuma imagem soa urgente: os planos fixos são bem pensados em termos de enquadramento, profundidade de campo, duração; enquanto os ruídos locais, essenciais à descrição daquele espaço, estão impecavelmente captados e editados. O cineasta e sua equipe fornecem um olhar atento e contemplativo.

Esta escolha afasta qualquer impressão de aleatoriedade ou improviso: estamos diante de um cinema do controle absoluto. Cada plano é composto como para um ensaio fotográfico, uma coleção de stills sobre a rotina nas fábricas. Tamanho esmero surpreende diante do desenvolvimento narrativo. Primeiro, as trabalhadoras começam a aparecer, e a câmera se aproxima lentamente de Vitória, filmando-a de longe, para então trazer planos mais fechados em seu rosto e corpo. Após uma visita ao médico, onde se queixa de dores, a protagonista decide organizar uma greve. Na verdade, o germe desta manifestação ocorre muito antes do início da trama – uma ligação telefônica confirma que a articulação entre operárias ocorria há tempos. Jamais conheceremos o nome de qualquer outra personagem, nem veremos seu rosto por mais de alguns segundos. Vitória reina sozinha naquele espaço, uma líder sem contestação, sem pressão dos patrões, sem família, sem histórico a respeito de sua conscientização política e de classe. O roteiro seleciona um fragmento muito preciso no tempo, isentando a personagem de história pregressa e de psicologia. Talvez se procure deste modo uma universalidade: ela não constitui um caso específico, e sim uma mulher trabalhadora como tantas outras, na qual seria fácil se espelhar.

No entanto, chega a ser curioso que as greves de grandes fábricas, geralmente cercadas por debates internos entre trabalhadores, advogados e empresários, sejam resumidas metonimicamente a uma única personagem. O cinema em longa-metragem trouxe retratos excelentes da vida sindical, em projetos como Recursos Humanos (1999), Machines (2016), A Fábrica de Nada (2017) e Em Guerra (2018). Apesar dos estilos completamente distintos, do suspense ao musical, eles se assemelhavam no fervor da disputa e no suspense inerente às negociações entre partes desiguais (tanto em números quanto em poder). Este é exatamente o ponto em que Vitória (2020) diverge dos demais: trata-se de um filme de luta sem luta, um filme de raiva sem raiva, um filme de coletividade sem coletivo. Este pode constituir o ponto exato em que o cineasta buscou subverter expectativas, aludindo à ação política ao invés representá-la de fato. O final anticlimático, sem sugerir qualquer consequência possível (brigas, represálias, nem mesmo a satisfação das grevistas pela paralisação) também aponta para a leitura minimalista. Ora, o elemento mais importante na constituição de uma greve seriam os motivos da paralisação, os riscos enfrentados pelos operários e o tamanho da organização patronal contra a qual se digladiam. Ironicamente, não teremos acesso a nenhuma destas dimensões.

Em paralelo, os poucos diálogos destinados a representar a situação de crise soam escritos em excesso, um grau acima da linguagem oral. A conversa ao telefone traz falas longas demais, em português bastante polido, ao passo que o discurso motivador de Vitória às colegas traz um tom mais afável e linear do que propriamente encorajador. O curta-metragem busca os bastidores, uma espiada nas coxias da luta sindical. Enquanto a maioria das obras se concentraria na ação propriamente dita, Ricardo Alves Jr. prefere o clima melancólico que motivaria a busca por mudanças. Curiosa proposta, memorável precisamente pela subversão de expectativas, e pela decisão ousada de se concentrar no olhar individual, enquanto elimina a presença dos patrões – simbolizados, talvez, pelas máquinas opressoras. O resultado funciona muito melhor pela força e beleza das imagens do que pela dimensão humana, um tanto simplificada e emudecida. Diante de uma situação de opressão, de desgaste físico e mental de uma trabalhadora, nada mais questionável do que retratá-la sem lhe dar voz. Uma bela indagação de Vitória ao médico, com a devida polidez, carrega o germe de uma revolta que poderia se estender ao restante do projeto de alguma forma, seja estética ou narrativa. Afinal, como representar a greve sem filmar atritos?

Filme visto online no 31º Festival Internacional de Curtas-metragens de São Paulo – Curta Kinoforum, em agosto de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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