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Crítica

Em Vidas Duplas, o cineasta Olivier Assayas ambienta a trama no mundo da literatura, mais precisamente nos círculos intelectuais marcados por discussões calorosas e extensas sobre a reverberação da arte na contemporaneidade. Como estofo dessas consecutivas elucubrações racionalistas, a boa e velha dinâmica dos adultérios, com pares sendo enganados em decorrência de relacionamentos comprometidos pela falta de novidades. Verborrágico, o filme aborda preocupações bastante específicas, basicamente quanto aos rumos que dispositivos eletrônicos e a interatividade ditarão mundialmente, num sentido amplo. Alain (Guillaume Canet) é o editor-chefe de uma empresa às voltas com números contraditórios relativos ao universo de leitores, diante de prognósticos animadores da ala jovem da empresa, mas que não se concretizam a curto prazo em vendas e lucratividade. Ele é casado com Selena (Juliette Binoche), atriz de uma série de televisão de sucesso, mas descontente com a sua carreira.

Portanto, há também um debate subjacente acerca da qualidade dos produtos oferecidos na atualidade, sejam eles literários ou audiovisuais. Os diálogos possuem muita consistência, dando conta de deflagrar circunstâncias com as quais facilmente nos identificamos. Em meio a instabilidades pessoais – embora os reveses não sejam enfrentados devidamente como crises –, os personagens trafegam de um ambiente a outro debatendo o dispêndio de energia e fundos para atingir poucos com meios tradicionais, enquanto milhares leem blogs, por exemplo. Como se obedecesse a uma cartilha dos pontos a não serem esquecidos dentro dessas complexas análises, Assayas também coloca na boca das pessoas questões como a rapidez da comunicação, a contribuição dos meios para o molde das mensagens, a gratuidade e/ou o baixo custo enquanto elementos que explicariam de maneira direta a adesão de vários leitores à informalidade dos espaços digitais, além da necessidade de valorização do livro impresso.

Com a habilidade que lhe é característica, Olivier Assayas extrai um fascínio curioso dessas ininterruptas trocas, servindo-nos os indivíduos como oscilantes entre a coerência racional, com espaços significativos para dissensos que engrandecem os colóquios, e a instabilidade amorosa, pouco alardeada, senão como traço completamente orgânico. O processo do escritor Leónard (Vincent Macaigne) oferece outra camada, porque ele consegue criar apenas com base na realidade, ligeiramente distorcendo cenários, situações e personalidades, mas deixando claras as suas inspirações em eventos verídicos. Novamente, como se precavido frente a possibilidade de deixar algum prisma de fora, o cineasta utiliza um evento para colocar em jogo o tema da liberdade do autor diante dos pudores das musas com relação à divulgação de intimidades insuficientemente travestidas de invenção. Os argumentos do autor parecem insuficientes às demandas da ávida plateia que reivindica a plena preservação da pessoalidade.

Ainda sobre essas pequenas invenções baseadas em acontecimentos, destaque para a brincadeira envolvendo a felação durante a sessão de um blockbuster. O filme é trocado para o escritor não denunciar que o ato aconteceu diante de algo para o grande público, um sintoma claro e jocoso da imagem revestida de grandiosidade e pompa que o escritor planeja projetar de si, ainda que se esqueça de calcular as implicações ao escolher o exemplar substituto. Vidas Duplas, em que pese certa repetição e uma alienação que impele os personagens a falarem apenas levando suas bolhas em consideração, encara com densidade e propriedade a conjuntura editorial/artística, que pode muito bem servir a outros horizontes, e com ternura a esfera íntima, repleta de não ditos, traições e movimentos tão desorientados no fim das contas quanto as apostas empresariais que levam em consideração a frieza dos números. Mesmo sendo um pouco cansativo, é cativante pela qualidade do quê e de como diz.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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