Crítica


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Sinopse

Dona de um dom especial, o de ler cartas e desvendar o futuro das pessoas, a cubana Vicenta Bravo vive em perfeita harmonia com o filho até que ele decide sair do país. É aí que tudo começa a desmoronar.

Crítica

Não que os espíritos não estejam falando com você. É o contrário. Você é que não os está ouvindo”. Essa frase, dita já próxima ao fim do longa dirigido por Carlos Lechuga (Santa e Andrés, 2016), é a chave para o entendimento do drama vivido pela protagonista de Vicenta B. Inspirada na própria avó do realizador, essa é uma mulher com um peso sobre si, e por causa desse atravessa um embate pessoal para descobrir como dele se livrar. Mais do que os eventos que cercam a narrativa, este é um filme sobre uma personagem em particular e como ela irá reagir frente a cada um destes conflitos que lhes são postos. Situações concretas ou apenas percebidas, assuntos do corpo e da alma. Muitos por ela passam, mais ainda são os que a ela recorrem em busca de ajuda. Mas quem poderá socorrer aquela que sempre se colocou como a fortaleza dos outros? Encontrar o seu caminho pode ser a mais árdua das missões, mas, também, a mais recompensadora.

Vicenta ganha vida e força na escolha de Linnett Hernandez Valdes. Atriz que até então havia vivido tipos como “maquinista” em Boccaccerías Habaneras (2014), de Arturo Sotto Díaz, e “a mãe de Rafael” em Chocolate (2016), de Roschdy Zem, eis uma artista esperando o momento de ser descoberta – e aqui está a ocasião pela qual aqueles que há admiravam à distância aguardavam. Muito do alcance ao qual o filme se propõe se dá com efeito graças ao trabalho dela, serena em suas colocações, certeira em cada olhar e destemida frente aos desafios que se vê obrigada a enfrentar. Não que os veja com valentia ou descrédito, pelo contrário: reconhece as ameaças e sabe a importância de se preparar para deles se desvencilhar da melhor forma possível. Do mesmo jeito, reconhece que evitá-los não é o melhor dos caminhos. Sabe a importância de lidar com cada pedra, estudar sua forma e estrutura, e a partir desse conhecimento, escolher a melhor tática de enfrentamento. Tanto com seus clientes, como também em relação ao que se passa consigo.

Habitando uma casa tão grande e decadente quanto a Cuba cuja sombra não mais alcança os mesmos que por tantos anos – e décadas – exerceu sua influência, Vicenta se vê só, mesmo diante dos que a cercam, nesse ou em outros planos (principalmente). O marido a deixou não pelo fim do amor, mas por não conseguir lidar com a concorrência por sua atenção. Carente, encontrou conforto em outros braços, mulher essa que até um novo filho se esforça para lhe dar. Da separação, restou Carlitos (Pedro Martinez), o filho já adulto que se prepara para dar seus próprios voos: vai embora, em busca de inspirações e oportunidades. E vai para longe, atravessando céus e mares, deixando para trás apenas a preocupação de uma mãe que resiste a enfrentar o ninho vazio, abandonada e carente. Vicenta se ocupa do que lhe aparece pela frente, tudo para evitar ter que tratar dos seus próprios problemas. Ela sofre, mas se recusa em admitir. Tanto o homem que a abandonou há tantos anos, como o garoto que agora se despede, coloca na sua conta a culpa por afastá-los. Quando, na verdade, essas são consequências da vida. Escolhas que são feitas. É chegada, portanto, a hora de não apenas enfrentá-los, mas também com eles retirar um aprendizado.

Quando se imagina isolada, ignorando aqueles que estão a sua espera, uma jovem surge lhe pedindo ajuda. Não sabe o que tem, o que enfrenta nem com quais armas vencer o abatimento que lhe consome. Vicenta está cansada, abalada demais com seus pensamentos para se abrir aos dilemas de outros. A trata não com desdém, mas sem a atenção devida, e por esse deslize irá pagar um alto preço. Curioso perceber o trabalho de imagem do filme conduzido por Lechuga. Tanto a fotografia quanto a montagem vão conduzindo o espectador por caminhos insuspeitos, como se adentrasse aos poucos no íntimo dessa mulher. Assim como a casa em que ela habita nunca é mostrada por inteira, também ela se revela aos poucos, como num quebra-cabeça cuja peças não estão completas, e por isso deverá contar com o espectador, que deverá formar por si uma leitura bastante particular desse drama em questão. Em mais de uma situação, por exemplo, objetos ao redor da protagonista – uma cadeira, uma bicicleta – caem quase que aleatoriamente, indicando esse desprendimento, essa necessidade de reconstrução, de abandonar velhas certezas e de abraçar novas verdades.

Nem tudo é drama em Vicenta B. Há mais de uma passagem de respiro, que se mostram cruciais para não apenas um entendimento, mas um real mergulho pelo que se passa com uma figura tão complexa, mas ainda assim próxima e passível de identificação. O dom que carrega consigo, essa habilidade em ver o que poucos enxergam e sentir o que muitos não mais entendem, não recai sobre os ombros dos fracos de espírito ou incapazes de lidar com tamanha responsabilidade. Por isso, sabe que é preciso ir em frente, apesar da tempestade pela qual atravessa. O olhar duro e combativo que carrega não apenas desafia, mas também demonstra o que é capaz, o tamanho dos seus sacrifícios e a envergadura que lhe é exigida para não curvar, mas manter-se firme em seus propósitos. Vicenta conta suas perdas, assim como qualquer outra pessoa, porém está ciente que há hora pra tudo. E a sua está prestes a chegar. Paciência não lhe falta, assim como o vento que sopra, por vezes derruba, em outras tantas enfrenta resistência, mas de um jeito ou de outro irá seguir seu curso, altivo e independente como desde o início dos tempos.

Filme visto em Fortaleza, como parte do 32º Cine Ceará

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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