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Sinopse

Anderson está procurando por uma casa de campo, junto com sua irmã e sua noiva. Eles encontram uma mansão e a proprietária os convida para passar a noite lá. Porém, a noite dos sonhos acaba se tornando o pior pesadelo deste trio.

Crítica

A princípio, não há nada errado na ideia de um filme amador, de baixíssimo orçamento, chegar ao cinema ou às plataformas de streaming. Idealmente, haveria espaço para todas as produções nacionais encontrarem o seu público, e mesmo dentro de um grupo de filmes mais fracos seria possível detectar um diretor de talento, talvez tolhido pela deficiência de produção ou pela inexperiência. A título de curiosidade, a jovem diretora Alice Rohrwacher foi descoberta quando filmou, por diversão, sua irmã (a atriz Alba Rohrwacher) tomando um banho de mar, com uma câmera caseira. Ao se deparar com a beleza das imagens e o refinamento das composições, um produtor amigo lhe ofereceu imediatamente a chance de fazer um filme. Este caso constitui uma exceção absoluta, é claro. No entanto, serve a nos alertar para a habilidade inata de algumas pessoas na construção de imagens. Às vezes, das produções caseiras surgem as propostas visuais e discursivas mais arrojadas, e necessárias para a renovação das formas de fazer cinema.

Por esta razão, vale assistir a Vende-se Imóvel (2019) com real interesse, especialmente por se tratar de um filme de terror, que tanto precisa de exemplares brasileiros para construir uma filmografia sólida. O terror parecia uma boa escolha para os recursos limitadíssimos do diretor Jean Guimard Gautheraud. Afinal, as produções do gênero podem brincar com a aparência caseira a seu favor, seja pelo subgênero do found footage ou pela paródia da linguagem do gênero. A textura de uma imagem digital de baixa qualidade, os efeitos de uma câmera tremida ou de uma atuação exagerada podem ser utilizados para uma boa paródia a respeito da artificialidade inerente à premissa dos casarões mal-assombrados por onde rondam fantasmas e/ou demônios. No entanto, cabe distinguir o trash enquanto gênero, da precariedade enquanto falta de qualidade. O cinema trash possui excelentes exemplares, capazes de explorar o excesso de sangues, tripas e efeitos visuais com recursos de linguagem ousados. O grande José Mojica Marins construiu seu cinema em torno de sensações extremas e exageradas, porém filmadas com precisão.

Com todas essas ressalvas em mente, ainda é difícil abraçar este filme de 2019. Primeiro, por se levar a sério demais. O diretor Jean Grimard Gauthereau poderia escancarar suas debilidades até o limite do humor, algo que traria certo recuo para o espectador, porém preferiu retratar a jornada de três familiares numa casa perigosa como se estivesse construindo uma aventura realmente assustadora. Nada no roteiro possui a mínima lógica, seja a placa amadora de “Vende-se Imóvel” sem número de telefone, a decisão de pararem no local enquanto possuem assuntos urgentes a resolver, a doença repentina de uma personagem, a decisão de dormirem na casa mesmo podendo buscar um pronto socorro, o medo súbito que assola as personagens femininas antes do primeiro indício de terror, o sumiço conveniente dos anfitriões, o aparecimento de fantasmas (e depois monstros, e depois poderes mágicos) etc. A lista poderia continuar indefinidamente. Os críticos de cinema costumam acusar as produções de terror comerciais de reproduzirem clichês sem buscarem a inovação. Ora, este filme brasileiro sequer consegue efetuar a linguagem básica de modo eficaz: seus personagens são bidimensionais, sem motivações nem personalidades definidas, enquanto o mal irrompe de lugar algum, destituído de um modus operandi determinado.

Esteticamente, o resultado não é melhor: a câmera nunca sabe ao certo onde enquadrar, com qual objetiva, qual profundidade de campo, ou que tipo de movimentos propor em cada plano. A iluminação caseira – ou falta da mesma – ressalta a precariedade da direção de arte e da maquiagem. Para um projeto tão dependente do casarão, este local nunca é bem explorado pela direção, de modo que os personagens correm a esmo por diversas escadas (ou, às vezes, pela mesma escada) e por corredores que se repetem. Às vezes, as vítimas parecem perseguir os monstros, e não o contrário. Os motivos para se separarem, ou de não fugirem pela porta principal ou pelas janelas são incompreensíveis. A montagem fracassa não apenas na tarefa de produzir ritmo – algo fundamental ao suspense e ao terror -, como também na responsabilidade de produção de sentido. Personagens são atingidos por alguma forma de magia, mas reaparecem intactos no momento seguinte. Eles fogem e depois voltam sem trazerem alguma ferramenta capaz de resolver a situação, nem mesmo alguma forma de ajuda. Por fim, acumulam-se imagens justificáveis dentro de um terror tradicional – amuletos com poderes mágicos, anfitriões malignos, monstros com cabelos escorridos sobre o rosto – porém destituídos de ligação entre eles. O frágil não consegue articular os elementos mínimos de causa e consequência, de tempo e espaço.

Talvez seja óbvio apontar a qualidade limitada desta produção – mesmo dentro do cinema B, mesmo dentro do trash, mesmo dentro do baixíssimo orçamento. O cinema de terror brasileiro tem produzido experimentos bastante válidos a partir de recursos igualmente modestos. Ora, a experiência diante de Vende-se Imóvel se assemelha àquela de assistir a um exercício de estudantes em audiovisual, a quem se perdoa as falhas em nome do aprendizado, da possibilidade de testar até amadurecerem o conhecimento da linguagem. No entanto, uma vez que o projeto é lançado junto de filmes muito bem produzidos, em serviços de streaming profissionais e por distribuidoras competentes, precisa ser julgado com as mesmas ferramentas que se utilizaria para interpretar outros projetos mais refinados. Neste sentido, o resultado não se sustenta. É preciso trabalhar o cinema de gênero com o devido respeito: histórias de monstros, fantasmas e pessoas gritando nunca foram desculpa para se produzir obras displicentes. O terror conquistou um espaço precioso dentro da história do cinema, servindo tanto para representar tanto nossos medos quanto para aludir metaforicamente às sociedades em que se insere. Com Vende-se Imóvel, resta a impressão de se assistir a uma brincadeira entre amigos ao invés de um projeto com aspirações artísticas comparáveis às de demais filmes de terror no circuito comercial.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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Bruno Carmelo
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Diego Benevides
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MÉDIA
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