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Sinopse

Depois de uma estadia frustrada no exterior, um homem de 30 anos resolve voltar ao Brasil para retomar seu antigo trabalho e reavivar as amizades. Mas ele percebe que o passado é uma roupa que não lhe cabe mais.

Crítica

Velha Roupa Colorida (2021) pode ser interpretado em primeiro lugar pelo viés naturalista. Os personagens se comunicam com evidente espontaneidade, corrigindo-se, buscando palavras, investindo em conversas banais para passar o tempo. Sendo paulistanos, disparam uma metralhadora de “mano”, “véio”, “meu”, “cara”, “tá ligado”, “tá suave”. Eles possuem problemas – a paixão duradoura pela ex-namorada, a dificuldade de conseguir trabalho, a responsabilidade de um bebê por nascer –, porém se comportam como se não tivessem nada a fazer. Rached (Dida Andrade) é um advogado que jamais vemos praticando o ofício, caso semelhante do colega Jucá (Adriano Toloza). Desconhecemos suas casas, suas famílias, seus objetivos para o futuro, seus desejos para além da menina com quem ambos desejam estar. Digão (Kauê Telloli) passou por momentos difíceis relacionados a problemas de saúde mental no passado, no entanto o episódio é desprezado pelos ex-colegas e pelo próprio rapaz. Carol (Louise D’Tuani) interpreta uma atriz que vemos atuando durante míseros segundos. O roteiro evita desenhar personagens de ação, preferindo as inações: a chegada ao escritório de advocacia, a comida no boteco, o cigarro aceso.

Estes jovens possuem preocupação nula com a sociedade, com qualquer instituição (família, igreja, escola, associações, equipes esportivas). A única coisa que importa aos protagonistas são eles mesmos: vou conseguir ficar com a menina mais bonita da festa? Vou passar no concurso de primeira? Enquanto isso, os filhos possuem função narrativa insignificante, em paralelo ao caso de corrupção no escritório, evocado sem real vontade de entrar em detalhes. Apesar dos intensos close-ups nos rostos, e da trajetória focada no dia a dia dos personagens, conhecemos pouco de cada um quando a sessão se encerra. Afinal, eles se comunicam de maneira semelhante, deambulam sem objetivo nem prazer. O filme aposta numa pós-modernidade repleta de indivíduos inconsequentes, vazios e blasés, tentando encontrar a si próprios. O problema decorre do fato que este olhar aos jovens adultos imaturos soa ultrapassado diante da multidão solitária, neurótica e ultraconectada de 2021. A trama se desenvolve em dois períodos: 2007 e 2017, sem que este último segmento, ocupando a maior parte da narrativa, conecte-se de verdade com a cidade, a comunidade ou o país. Os personagens vivem num universo-bolha.

Os projetos construídos a partir do improviso, ou de estímulos dinâmicos da direção, podem resultar em jogos cênicos complexos contanto que o elenco seja condicionado para produzir tais efeitos. No caso de Velha Roupa Colorida, diversas cenas e interações resultam inócuas, a partir de conversas girando em falso, além de uma ocupação ineficiente do espaço e do tempo. A história se torna desestruturada, arrastando-se sem se desenvolver de fato. A divisão em capítulos ou blocos (“O relógio”, “A carne”, “A criança” e “Epílogo”) se revela incapaz de fornecer algum esqueleto ao conjunto – em situação análoga àquela do título, mal aproveitado enquanto símbolo ou metáfora. No papel principal, Dida Andrade adota uma composição maníaca, caracterizada pelos olhos vidrados, a mão esfregando o rosto e o queixo, os tiques com os lábios. É difícil entender as escolhas do ator durante o inquérito policial, ou na garagem com Jucá. Andradina Azevedo, parceiro habitual de Andrade na direção de longas-metragens, percorre um caminho semelhante, apresentando inesperada violência na condução de algumas cenas (vide o embate com a esposa na escada). As interações transparecem o vigor e as imperfeições de uma leitura branca, ou talvez de um primeiro ensaio.

A este tipo de cinema, há quem atribua o selo de mumblecore, movimento capaz de explorar o baixíssimo orçamento e sua consequente liberdade em forma de afrontamento às normas estéticas e sociais. No entanto, as boas produções norte-americanas incluídas nesta prática jamais implicaram em autocondescendência, nem em permissão para a inconsistência. Aqui, a câmera treme incessantemente em espaços de perfeito controle técnico, inclusive diante de personagens comodamente sentados. Uma iluminação ora azulada demais, ora incompreensivelmente verde, se junta à mixagem desigual e ao tratamento de som curioso de uma ligação telefônica na produção de um resultado que aceita o descontrole. O forte eco dentro da cozinha, a dificuldade de iluminar a sala de estar durante a festa, a câmera chacoalhando-se para todos os lados ao redor de Carol, a profundidade de campo às vezes infinita, às vezes restrita, despertam a incômoda sensação do tanto faz. A espontaneidade deixa de ser uma virtude obtida às custas de muita técnica e preparo, para tolerar a aceitação de qualquer efeito produzido pela linguagem e pelos atores. Talvez o exemplo mais claro se encontre no plano final, quando a conversa ao telefone aparenta ter alguma importância narrativa, sendo entretanto limitada pelo fade e pela conclusão anticlimática.

Ao final, Velha Roupa Colorida incomoda enquanto conceito e formato de produção. Há atores bastante talentosos no grupo: Carol Melgaço, Fábio Penna e Louise D’Tuani poderiam oferecer muito mais, caso seus personagens fossem aprofundados. Em contrapartida, o projeto não parecia pronto para filmar, seja pelo roteiro carente de novos tratamentos, pelo trabalho deficiente de som, luz e montagem, e pelo conceito pouco maduro quanto à exploração de tempo e espaço. O cinema de baixo orçamento, seja ele vanguardista, mumblecore, de guerrilha e outros, jamais constituiu uma carta branca para o baixo rigor, pelo contrário: experiências do tipo requerem fino controle de linguagem. O cineasta poderia explicitar suas falhas ao limite do absurdo, do cômico, do trash, do cinema B metalinguístico e autoconsciente. Ora, o projeto leva a sério o mosaico de uma burguesia artística paulistana, de viés individualista. Caso este olhar resultasse numa crítica, uma reflexão, um contraste com outros modos de vida, geraria atritos interessantes. Mas são precisamente os atritos, os diferentes estilos de atuação, os confrontos entre os personagens e as transformações em suas trajetórias que faltam ao projeto. Eles atravessam seus dias, e a tela do cinema, sem deixar marcas profundas, a exemplo do amigo supostamente esquizofrênico, lembrado com desinteresse tanto pelos colegas quanto pelo próprio filme.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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