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Sinopse

Boa parte de sua vida isolada na mansão dos pais, Emily Dickinson se tornaria uma das poetisas mais importantes de sua geração, apesar de ter sido uma mulher introvertida e marcada por traumas juvenis.

Crítica

A câmera do diretor Terence Davies desliza pelos cenários de Além das Palavras como se quisesse, numa tacada só, evocar certa elegância proveniente da pompa do século 19 e, num nível mais profundo, tornar-se parte do fluxo orientado pelo transcorrer do tempo. A protagonista é a poetisa Emily Dickinson, interpretada na juventude por Emma Bell e na maturidade pela aqui impressionante Cynthia Nixon. Desde nova ela demonstra gênio forte, opondo-se aos dogmas religiosos com semelhante fervor ao de sua luta pelos direitos da mulher, ao combate da visão do feminino como um mero adereço das vontades masculinas. Avessa ao autoritarismo, porém, ela não se furta de seguir convenções, solicitando ao pai, por exemplo, o direito de escrever à noite, quando todos os demais já tivessem adormecido. A madrugada se transforma, então, na companheira de escrita, algo capturado neste filme com muita beleza nas cenas da criação sendo iluminada apenas pelas luzes trepidantes das velas.

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Nas conversas de Emily com sua amiga, a extrovertida e sarcástica Vryling Buffam (Catherine Bailey), se constrói um rico arcabouço de formulações sobre temas variados, como a hipocrisia, a virtude, a moral, entre outros. Aliás, o texto de Além das Palavras apresenta tal nível de excelência, principalmente no que diz respeito à fluidez com que injeta substância intelectual nas caminhadas aparentemente despretensiosas, que não raro Davies incumbe a palavra de fazer a trama avançar. A narrativa é entrecortada por excertos dos poemas dessa mulher voluntariamente enclausurada na propriedade familiar. Ela tem comportamentos cada vez mais conflitantes, contraditórios, sintomas da complexidade de sua personalidade moldada por diversos agentes e elementos. Os Dickinson testemunham a Guerra Civil norte-americana, repercutindo a turbulência daqueles anos em discussões fomentadas por um pai que prefere os eventuais ônus da rebeldia à docilidade próxima demais da escravidão.

Terence Davies aproveita o fato da trajetória de Emily Dickinson ter ocorrido em Massachusetts, uma das primeiras regiões estadunidenses colonizadas pelos britânicos, para construir um drama de época conceitualmente mais próximo dos exemplares do Reino Unido. No que tange à forma, isso fica evidente na maneira como são esquadrinhados os costumes, e no notável trabalho dos atores, cujas composições, marcadas pela solenidade então vigente, absorvem também as transformações decorrentes da passagem dos anos. Aliás, a progressão cronológica não é pontuada ordinariamente, porque em Além das Palavras o tempo é compreendido em sua dimensão mais filosófico-existencialista, sendo assim irrelevante informar quantos dias ou anos separam um evento do outro.  Na medida em que envelhece, Emily deixa aflorar uma amargura que transforma a virulência de seu discurso arrojado de outrora numa forma de grosseria que afasta previamente as pessoas.

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Esse manancial de sentimentos que sobrevém aos diálogos afiados, ao questionamento dos ensinamentos religiosos e das posições bastante cristalizadas na sociedade – assimiladas como regras não escritas responsáveis por oprimir e segregar –, ganha contornos mais melancólicos quando o caráter cíclico e inexorável do tempo trata de recrudescer os ímpetos progressistas e de libertação, fazendo irromper velhos fantasmas antes combatidos, novamente evocados por frustrações e demais fissuras na alma dos personagens. Além das Palavras é um filme que, não bastasse o apuro na construção das interações e o desempenho notável do elenco, ainda propõe, em camadas subterrâneas, reflexões acerca da tirania do tempo, bem como das forças determinantes à personalidade do indivíduo, como a família, o tecido social e as expectativas. Terence Davies põe a tradição em xeque, sem fazer dela uma vilã, evitando julgamentos ou qualquer outro procedimento que reduza seu olhar múltiplo e minucioso.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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