Crítica


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Sinopse

Participante ativa do sindicalismo das prostitutas, Marie matricula seu filho numa renomada escola de culinária quando ele é expulso de seu antigo colégio. Mas, como ela fará para pagar as mensalidades?

Crítica

Sábio é aquele que primeiro afirmou que tudo é uma questão de perspectiva. A gastronomia, por exemplo. Por anos – e décadas, certamente séculos – considerada uma atividade menor apenas por ser desempenhada basicamente pelas mulheres que ficavam para trás enquanto seus homens saíam para trabalhar (como se ser “dona de casa” não compreendesse dedicação e entrega), ao mesmo tempo era vista como uma prática das elites quando defendida por eles que, no entanto, se autodenominavam ‘chefs’, ou seja, autoridades naquele ambiente. Em Uma Mulher do Mundo, Marie (uma estupenda Laure Calamy) vê no exercício culinário a chance de escapar de uma vida de sacrifícios e provações – mas, não a dela, e, sim, a do filho adolescente, Adrien (a revelação Nissim Renard). Os dois são pessoas que tentam, cada um ao seu modo e condição, juntar os pedaços de suas vidas para seguirem mais um dia adiante. Porém, é sabido que oportunidades transformadoras não batem duas vezes à porta. Por isso o senso de urgência, tão bem imposto à trama pela diretora Cécile Ducrocq. Um mergulho sem volta nessa realidade é o convite que aqui é feito ao espectador, um contexto duro, mas revelado de modo tão envolvente que é praticamente impossível não se deixar levar.

Ducrocq e Calamy trabalharam juntas antes em diversos episódios da série Dez por Cento (2015-2020). É de se imaginar que tenha sido dessa experiência a certeza de que a atriz seria uma das poucas hoje em dia a defender tal papel com tamanha garra e desprendimento. A vencedora do César por Minhas Férias com Patrick (2020) foi novamente indicada ao prêmio máximo do cinema francês por sua atuação como Marie, um prostituta que não tem problema algum com a profissão que ocupa o seu dia a dia (ou, melhor dizendo, sua noite a noite). Segura de sua condição, é honesta com clientes e qualquer outra pessoa que dela se aproxime, seja o gerente do banco ou a mãe que mora no interior. Da mesma forma como acredita ser importante ir às ruas e protestar por melhores condições de trabalho – e de respeito, cívico e social – entende que trata-se de algo de futuro limitado, e que chegará o momento no qual suas opções acabarão se limitando. Por isso, também, a preocupação com o garoto que é parte de si.

Adrien é quase um delinquente – está a um passo da contravenção. Vivendo em um abrigo para jovens como ele, passa seus dias cercado por drogas, bebidas e outras atrações não muito lícitas, ainda mais quando não se preocupa em frequentar a escola (o que tem acontecido com cada vez mais frequência). É de se imaginar que os dois – Marie e Adrien – já tenham passado por poucas e boas juntos, e que essa separação física tenha sido a melhor escolha para ambos continuarem juntos, de um modo ou de outro. No entanto, trata-se de uma solução temporária, e estão cientes disso. Se o garoto, de autoestima afetada e levado a não acreditar no próprio potencial, prefere ignorar o amanhã e se focar apenas no hoje, será a mãe a que terá que chamá-lo ao agora, alertando-o para o que está por vir caso não faça algo de diferente. O rapaz tem apenas uma afinidade: o prazer – e a habilidade – em cozinhar. A mãe, portanto, rapidamente identifica aí a possibilidade de mudança. Mas pagar a taxa de inscrição na melhor escola da cidade não é barato. E conseguir juntar o valor necessário irá exigir deles talvez mais do que possam – ou estejam dispostos – a pagar.

Por outro lado, o que lhes resta como alternativa? Marie está próxima dos 40 – por mais que alegue ter “30 e poucos anos” quando questionada – e sabe que não poderá continuar na ativa por muito tempo. Quanto ao filho, o destino dele parece ser ainda mais incerto. Algo que para muitos é visto como não mais do que um passatempo, uma ocupação para momentos de lazer, pode ser, no entanto, a chave de virada para alguém ainda nos seus anos de formação. Há, portanto, duas discussões em debate. Uma delas fala da falta de perspectivas que desfrutam adolescentes e jovens no início de suas vidas adultas quando algumas das etapas tradicionais – uma família ajustada, uma educação convencional, o suporte de uma casa e alimentação básica – são atropeladas (quando não eliminadas por completo). Outra é a própria prostituição enquanto um profissão digna de respeito, ainda mais quando não lhe é imposta como última – ou única – solução, mas como uma escolha, a qual se assume com orgulho e enfrentamento. Há diretrizes particulares desse mundo – assim como em qualquer outra atividade – mas em relação a essa existe uma mítica de contravenção, lascívia e violência que carece de esclarecimento. Justamente o que a protagonista tanto tem a enfrentar em sua batalha pelo mínimo a que tem direito.

Laure Calamy, uma das melhores e mais completas atrizes hoje em dia na França, faz de sua Marie não apenas Uma Mulher do Mundo, mas, acima de tudo, uma voz que não pode ser silenciada. Uma figura capaz de revirar conceitos, seja em casa como na sociedade, propondo questionamentos e provocando dúvidas quanto ao que por tanto tempo se deu como certo. A busca por modelos não convencionais faz parte da rotina que enfrentam a cada sol, e assim como no clássico Mamma Roma (1962), de Pasolini, eis aqui uma mulher capaz de mover montanhas – ou enfrentar uma sociedade que insiste em vê-la como parte de um problema, e não da solução – na luta pelo que pensa ser o melhor para si e os seus. Como num relógio que anda contra o tempo, eliminando prazos e aumentando angústias, tem-se uma possibilidade concreta pela qual lutar no horizonte. O esforço para alcançá-la dependerá também da energia de uma audiência que aqui poderá encontrar não apenas um exemplo a ser seguido mas, acima de tudo, um motivo para reflexão sobre o que esse cenário tem a dizer sobre o mundo de hoje.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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