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Sinopse

Uma prostituta sonha em conseguir comprar um apartamento e abrir um negócio próprio. No entanto, ela começa a se preocupar com o filho que parece cada vez mais desinteressado por estudos e trabalho.

 

Crítica

Logo no início de sua carreira como realizador, quando havia dirigido apenas um longa (Accatone: Desajuste Social, 1961), o revolucionário Pier Paolo Pasolini prestou um tributo ao neorrealismo italiano com Mamma Roma, drama que não apenas oferece um dos grandes desempenhos da diva Anna Magnani, como também é hábil em capturar os arredores semidestruídos de uma cidade indecisa entre um passado de glórias e um presente devastado, tentando descobrir ainda qual seria seu futuro possível. A mulher que empresta o apelido pelo qual se tornou conhecida ao batismo do filme é não apenas força, mas também sentimento de uma história sobre almas perdidas, lutando desesperadamente para se encontrar, refletindo, portanto, o drama do próprio país. Ela ri descontroladamente nas mais diversas situações, do casamento do ex-amante com outra mulher até ao voltar para casa atravessando as ruas escuras de um lugar que não mais reconhece, mas com o qual também não se importa. Esse descaso a tudo ao seu redor responde pelo único a ocupar sua mente: o filho que, enfim, recuperou. Há um rumo a ser tomado, portanto. Não apenas ela, mas também a Itália.

Importante lembrar, no entanto, que o cineasta estava longe, apesar do currículo diminuto como realizador, de ser um novato. Pasolini, desde sua estreia como roteirista em A Mulher do Rio (1954) – um dos primeiros sucessos comerciais de uma jovem Sophia Loren – havia colaborado com os enredos de clássicos como Noites de Cabíria (1957) e A Doce Vida (1960), entre tantos outros. Destes trabalhos feitos em parceria com o mestre Federico Fellini, é possível se identificar muito do que decidiu registrar ao assumir uma posição de maior destaque atrás das câmeras. Assim como a ingênua Cabíria de Giulietta Masina, Mamma Roma segue acreditando ser o próximo o seu último cliente, e que uma vida melhor, sem as vivências noturnas e a troca do sexo por um dinheiro que logo irá lhe escapar dentre os dedos, está ao seu alcance, talvez não hoje ou mesmo amanhã, mas também não muito distante a ponto de fazê-la desistir desse sonho que persiste, ainda que inalcançável. Por outro lado, o passar dos dias e das desilusões a aproximam cada vez mais do Rubini de Marcello Mastroianni, um homem que tudo já viu, mas que por nada mais consegue demonstrar emoção. O mundo está ao seu alcance, mas do que foi feito a energia necessária para conquistá-lo?

Partindo de uma história real lida em uma reportagem de jornal, Pasolini elabora constrói a trama de uma mãe em busca de conexão com o filho, acreditando que se lhe oferecer aquilo que sempre faltou a ela em termos materiais, conseguirá suprir uma carência mais profunda e intensa. Há densidade nos apelos de Ettore (Ettore Garofolo, de Feios, Sujos e Malvados, 1976, em sua estreia no cinema), no desinteresse por seu destino, na dança desajeitada, nas caminhadas sem rumo, nos amigos que o ameaçam, na garota que pouco pode lhe oferecer além da iniciação fugidia em um sexo sem repercussão. Quando a mãe o busca no interior e o traz para a cidade grande, não faz essa mudança por completo, deixando-o perdido num limbo, longe daquilo que conheceu, porém sem ter chegado ainda onde havia sido prometido. Caberá ao garoto fazer seu caminho, meio que tateando, com coragem e estupidez, incapaz de reconhecer a necessidade de amparo que sempre lhe fora negada. Mamma Roma precisa trabalhar, pagar dívidas que lhe foram relegadas, enfrentar dragões maiores. E será num instante de descuido que tudo o que lhe sobrou será perdido para sempre.

O roteiro, também escrito por Pasolini, abre mão de fazer dessa mulher apenas mais uma heroína sofrida ao dividir sua jornada com a do filho. Cada um dos dois, de um jeito ou de outro, irá ocupar a narrativa em iguais medidas. Mamma Roma é luz e poder, não mede as palavras e se mostra resoluta com o que faz, seja na banca de frutas e vegetais que defende pela manhã na feira, como de salto alto e vestidos apertados que enverga pelas ruas à noite. Da mesma forma, é angústia e decepção quando confrontada pelo antigo cafetão, que a usa e a explora de acordo com sua vontade, sem se importar com os anseios ou compromissos daquela que tanto lhe deu, mas da qual segue exigindo mais. Por outro lado, o jovem é largado sozinho em seus dias embranquecidos, desprovidos de cor, descobrindo o amor em terrenos áridos e se arriscando em pequenos golpes que somente lhe podem oferecer dor de cabeça e nada mais do que isso. Por maior que sejam os agrados que lhes são destinados, como a moto dada pela mãe ou a visita atrás do morro conduzida pela namorada de ocasião, a atração por um desfecho trágico parece ser forte demais para ser ignorada. O beco sem saída que se encontra diante dele não o ignora, mas pelo contrário, o convida a ponto de não permitir uma rejeição.

Uma demonstração da genialidade de Pasolini não apenas como contador de histórias, mas também como cineasta, está nas longas caminhadas noturnas feitas em plano-sequência, com a protagonista desfilando seus arrependimentos e insatisfações a qualquer um que se disponha a acompanhá-la, nem que seja por alguns poucos passos. A ausência de luz e esperança contrasta de modo inequívoco com a amplitude de um cenário desesperado por se levantar dos escombros, ambientes com os quais o filho se vê desorientado dia após dia. São dois lados de uma mesma moeda que Mamma Roma coloca em evidência, como partes de um todo, um conjunto que se mostra incompleto e inquieto, mas que ainda tem muito a sofrer até se resguardar em uma suposta completude a qual não parece ter direito, por maior que seja sua dor. Tanto um grito por socorro como um pedido de ajuda, mas mais do que isso há a verdade de um momento em desencontro, não pronto para seguir, mas também sem forças para olhar para atrás e aprender com os erros cometidos. Uma coragem que apenas uma mãe possui, tanto para sentir a dor da perda, como, também, a resignação de seguir em diante, por mais que o chão a sua frente lhe seja negado.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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