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Sinopse

Latasha Harlins tinha 15 anos de idade quando foi assassinada numa loja de conveniência. A proprietária do estabelecimento alegou que a adolescente estava tentando roubar um suco de laranja, mas a mentira foi desmascarada pela justiça. A melhor amiga de Latasha relembra a história desta jovem brilhante que sonhava em se tornar advogada.

Crítica

Em primeiro lugar, vale dizer que o curta-metragem se constrói para Latasha, e não sobre ela. Existe uma beleza potente na oferta de um filme a uma pessoa morta, o que serve tanto para relembrá-la quanto para imortalizar a sua existência. A diretora Sophia Nahli Allison efetua uma homenagem à garota de quinze anos, assassinada pela dona de uma loja de conveniência por causa de um suco de laranja que a vítima nunca pretendeu roubar (o dinheiro para o produto estava em sua mão, e caso contrário, o pretenso roubo jamais legitimaria o assassinato). Assim, a adolescente ultrapassa a condição de objeto de estudo, assim como evita a posição de mártir de uma causa. O episódio despertou rebeliões em Los Angeles nos anos 1990, porém a cineasta prefere dar um passo atrás e descobrir quem foi esta jovem brutalmente morta. O papel sociológico se inscreve apenas num segundo momento: em primeiro lugar, o filme investiga a personalidade de Latasha, suas amizades, seus esportes preferidos e a ambição de se tornar empresária e advogada.

Na incapacidade da vítima em receber tal presente, somos nós, enquanto espectadores, que escutamos esta conversa entre amigas. O efeito se assemelha àquele de ler o diário alheio, pelo mergulho na intimidade diferente de nossa vivência. Quanto mais cotidiano se faz o retrato, mais potente se torna a mensagem da diretora contra os crimes raciais que abalam os Estados Unidos há décadas. A cineasta evita gritar a desigualdade social aos quatro cantos: basta encontrar nesta tragédia um retrato capaz de identificação. Contra o noticiário que insiste na perda de “uma garota negra”, o filme insiste que há mais do que estatísticas e dados socioeconômicos em jogo. O documentário promove uma política dos afetos, um olhar de igual para igual. Ao invés de evocar fatos, dados e decisões judiciais, e de convocar especialistas para dissertarem a respeito do racismo no país, propõe o confronto com o espelho: você é capaz de permanecer indiferente diante de um crime de ódio, quando descobre o quanto Latasha significou (e ainda significa) para tantas pessoas ao redor? Em tempos pandêmicos de descaso com a coletividade, este gesto representa uma abordagem provocadora: nada incomoda mais os burocratas do que o afeto.

Curiosamente, o projeto utiliza o mínimo de imagens possíveis da adolescente. Em seu processo de identificação, Allison busca tornar esta jornada universal. Enquanto as vozes de amigas e familiares descrevem Latasha, descobrimos imagens de dezenas de meninas negras de idades distintas, em bairros periféricos semelhantes àquele onde morava a protagonista. Trata-se menos de um documento, no sentido estrito de pesquisa e de referência ao real, do que uma evocação poética sobre juventudes negras. Conforme as narrações em off fazem referência direta à menina morta, a imagem expande o discurso a inúmeras figuras anônimas, que sugerem um imaginário coletivo em torno dela. A montagem efetua uma bela colagem de fragmentos em vídeo, imagens contemporâneas em praças e piscinas, reconstituições de lojas de departamentos, flashes de casas, efeitos de luzes piscando, animações abstratas ou figurativas. Os sentimentos de dor são representados por desenhos de traços emaranhados ou motivos geométricos: a diretora busca alternativas para não explorar a dor em nome do espetáculo. Cada espectador é convidado a construir uma Latasha em sua cabeça a partir de referências pessoais. A jovem poderia ser qualquer conhecida nossa, ou na lógica de Flaubert e Madame Bovary, “Latasha sou eu”.

Deste modo, o curta-metragem solicita um espectador ativo: somos nós quem construímos esta personagem. Tornamo-nos diretores de uma narrativa convenientemente sensorial, aberta a interpretações. Em paralelo, o resultado está distante das configurações do exigente cinema experimental: a linguagem permanece acessível ao público médio, como convém à produção de cunho político amplo, produzida por uma grande plataforma de streaming. O filme combina ativismo e poesia, discurso social e investigação psicológica. As ambições são grandes para um curta-metragem de menos de vinte minutos que, no entanto, demonstra ótimo ritmo de montagem, apropriado ao formato reduzido. Talvez alguns flashes soem produzidos demais, ao limite da estética publicitária, no entanto, formam um conjunto comovente sem apelar para o sentimentalismo fácil. A diretora faz com que a ausência de Latasha no filme represente a ausência da protagonista para as pessoas ao redor. É tão estranho assistir à homenagem de uma garota sem ver seu rosto quanto conviver num bairro cercado de memórias da adolescente, sem vê-la crescendo e se tornando a profissional que sonhava em ser. A cineasta encontra recursos cinematográficos simples e eficazes para despertar a sensação de perda.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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