Crítica


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Sinopse

Bruno fica demasiadamente apegado à cabana à beira-mar que ele compartilhava com sua esposa recentemente morta. Despejado por seus sogros, ele promete recuperar esse espaço que lhe traz tantas memórias.

Crítica

Um Lugar para Nós Dois (2019) segue à risca a estrutura das comédias dramáticas indies norte-americanas. Os personagens representam os “perdedores” dentro da competitiva cultura ianque: Bruno (Aden Young) jamais superou a morte da esposa; Felix (Ken Jeong) mora num trailer e não tem perspectivas para o futuro; Rita (Jackie Tohn) ganha pouco nos trabalhos como enfermeira e caixa de supermercado; Marie (Parker Posey) dedica seu talento literário a elogiar o musgo enquanto símbolo perfeito de adaptação na natureza. Eles são nerds, solitários, deslocados, com dificuldades de relacionamento, cruzando-se por acaso. Cada um deles espelha sua tristeza na tristeza alheia, tornando-se uma pessoa melhor. O cinema independente que circula pelo festival de Sundance e afins se baseia numa trajetória imutável: os personagens estão no fundo do poço, e terminarão suas jornadas um pouco mais felizes, embora nada tenha se transformado radicalmente em suas vidas, porque este gênero não acredita em mudanças radicais. Não há grandes risadas nem choros profundos, mas um sorriso amarelo que permeia toda a narrativa.

Bruno, o loser da vez, empenha-se em recuperar a casa construída por ele mesmo, e retomada legalmente pelos sogros após a morte da esposa. O conflito é apresentado com rapidez espantosa, em menos de dez minutos de narrativa. Este será o único dilema do rapaz em torno do qual os coadjuvantes orbitam: o melhor amigo está sempre disponível quando ele precisa; a bela Marie aparece no bar local quando o rapaz está; Rita é a caixa do supermercado que contabiliza as compras dele, e também a enfermeira que cuida dele quando se interna no hospital. O universo artificial e egoico existe apenas para o protagonista, impulsionando-o a atravessar de uma vez por todas o luto. A generosidade do texto para com o pobre arquiteto se traduz na postura muito menos benevolente em relação às pessoas que o cercam. Sempre há um limite muito tênue na abordagem dos heróis fracassados da comédia indie: eles nunca se importam de fato com as pessoas ao redor, mas o mundo os perdoa por sua tristeza, e continua ajudando-o apesar das hostilidades sofridas. Bruno pode ser agressivo com as pessoas ao redor, mas estas não têm o direito de responder à altura – sobretudo as mulheres da trama, desde a mãe às potenciais namoradas, que toleram quaisquer desmandos do rapaz.

O aspecto mais interessante do projeto se encontra no tratamento da casa enquanto personagem ativo, e símbolo potente do luto. Trata-se de uma questão mais afetiva do que financeira ou jurídica: cada vez que a casa é reformada, esvaziada ou decorada, ela reflete os sentimentos do protagonista em relação à esposa morta. Belos instantes de contemplação são reservados ao arquiteto dentro da cozinha vazia, ou admirando os azulejos do banheiro. Quando não está preocupado demais introduzindo alguma piada para diluir o conteúdo triste, o filme fornece inspiradas cenas de poesia melancólica – o que se estende à metáfora do musgo. Hernan Jimenez não se revela um diretor ambicioso em termos estéticos, contentando-se com planos de conjunto acadêmicos, porém eficazes. A fotografia aposta numa iluminação excessivamente nítida, típica dos tempos digitais, sem qualquer criação em interiores capaz de refletir a solidão dos protagonistas, enquanto a montagem estica as cenas dramáticas um segundo a mais do que previsto, para abrir espaço à transformação da dramaticidade em humor autodepreciativo. A trilha sonora desempenha um papel decorativo, impedindo o silêncio e sublinhando o tom agridoce.

No elenco, Aden Young possui o papel ingrato de encarnar o protagonista casmurro entre uma dezena de alívios cômicos. Ele demonstra uma prestação comprometida, cerrando os dentes e o queixo para sugerir a tensão, angústia e dificuldade de dizer o que realmente pensa. Mesmo assim, oferece pouca variação, sendo facilmente ofuscado pelos parceiros de cena: a excelente Jacki Weaver proporciona os momentos mais engraçados da trama; Ken Jeong desempenha com desenvoltura a variação do tradicional sidekick maconheiro; e Beau Bridges possui um momento discreto para demonstrar seu talento dramático. O roteiro garante que cada personagem coadjuvante ganhe sua cena de destaque, enquanto Bruno atravessa os humores alheios com a mesma expressão taciturna, cabelos mal arrumados e roupas amassadas. Ironicamente, o roteiro demonstra mais atenção às transformações da casa do que àquelas do protagonista. Talvez um ator mais versátil fosse capaz de esculpir um jogo cênico à altura do elenco de apoio, embora seja possível que Jimenez tenha solicitado ao ator um registro diminuto, em contraste com o estilo expansivo dos colegas. Durante parte considerável da trama, o protagonista se torna coadjuvante de suas próprias cenas.

Apesar dos pesares, Um Lugar para Nós Dois cumpre a tarefa de apresentar o período de luto com respeito e empatia, ao passo que evita a saída fácil do amor romântico. A narrativa acena com insistência à possibilidade de fornecer uma nova paixão para tapar as feridas deixadas pela esposa morta, mas felizmente descobre a possibilidade de felicidade por si próprio, tanto para Bruno quanto para as mulheres da trama. A conclusão possui a inteligência de criar novos símbolos de afeto ao arquiteto, sem precisar se ater à casa. O resultado é tão correto quanto pouco memorável: o espectador pode ter a impressão de ter visto este mesmo filme algumas dezenas de vezes antes. No entanto, isso não representa uma experiência desagradável, muito pelo contrário: as piadas, dores e superações estão presentes nos momentos certos, cumprindo o papel esperado. O projeto se converte num equivalente audiovisual do comfort food, evitando perturbar o espectador ou ferir os personagens: todo erro pode ser consertado, os desafetos podem ser solucionados, e os impasses terminam magicamente bem. Esta forma de cinema parte da ideia de que o mundo é triste e injusto, mas podemos nos tornar um pouco menos tristes por meio de esforço e boa vontade, sem mudarmos uma vírgula sequer da configuração social. Otimista ou conformista, esta solução permite ao filme e aos personagens se tornarem genuinamente satisfeitos com as pequenas possibilidades de afeto que lhe são fornecidas ao longo da trama.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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