Um Inverno em Nova York

Crítica


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31 votos 6.6

Onde Assistir

Sinopse

Fugindo do marido abusivo, Clara decide começar novamente, em Nova Iorque. Na companhia de seus dois filhos, ela é acolhida por estranhos com um coração enorme.

Crítica

The Kindness of Strangers (A Bondade de Estranhos, numa tradução livre), título original deste filme da cineasta Lone Scherfig, é bem mais adequado do que o escolhido para o lançamento no Brasil. Isso porque a escancarada intenção da realizadora é justamente fazer uma espécie de ode à benevolência das pessoas com desconhecidos, algo distante de qualquer olhar cínico (realista?) sobre o funcionamento de uma metrópole como a Big Apple. O filme é uma antítese do pensamento frequente de que o tamanho da cidade é equivalente à indiferença de seus moradores apressados. Existe uma chamativa idealização, bem como a predisposição a incorrer em incongruências e facilidades, desde que estas vitaminem a mensagem positiva. A protagonista é Clara (Zoe Kazan), moradora de um pacato subúrbio que foge do marido abusivo na companhia dos dois filhos pequenos, com uma mão na frente e a outra atrás. A despeito da tentativa de forjar férias lúdicas em Manhattan, ela não demora a transparecer o desespero de quem está sem eira nem beira, desamparada e destituída de perspectivas. Há uma sucessão de gente fraturada se ajudando, interligada por coincidências.

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A intenção de Um Inverno em Nova York é ecumênica. Apesar das diferenças, os personagens sempre estão dispostos a estender a mão, sintoma bastante exemplificado pela boa samaritana vivida por Andrea Riseborough, plantonista hospitalar que faz turnos extenuantes e lidera abnegadamente um grupo calcado no perdão. O simplismo é tamanho que, adiante, quando ela pensa em largar tudo, cansada de carregar o mundo nas costas, o envolvimento amoroso, depois de tantos anos de solidão, é suficiente para lhe dar uma nova injeção de ânimo. Lone Scherfig desgasta drasticamente as camadas dos participantes desse núcleo cada vez mais irmanado por casualidades forçadas. Quando a criança sofre de hipotermia, é útil que a mãe conheça uma enfermeira; ao precisar de defesa legal, é igualmente conveniente que seu interesse amoroso tenha como único amigo um advogado; o sem-teto encontra abrigo na companhia da palestrante e, adiante, emprego oferecido pelo ex-presidiário que completa esse círculo de auxílio e compreensão artificialmente desenhado.

Da forma como é apresentado, Um Inverno em Nova York se aproxima, em tom e estrutura, daqueles filmes natalinos em que a festividade é colocada em risco. A simetria se dá justamente porque Lone Scherfig flerta com o louvor a um destino operando invisivelmente para garantir aos bons o fim da tristeza e a vitória da felicidade apesar de tudo. Tentando elogiar a solidariedade humana, ela prefere não abrir o escopo dos contextos, deixando a protagonista ser pura e simplesmente alguém tentando sobreviver à agressividade de outrem – pena que sua cleptomania seja atenuada rapidamente. Já os “anjos da guarda” se tratam, pura e meramente, de gente em busca de fazer o certo. A única coisa que justifica Marc (Tahar Rahim) ser um ex-apenado é o fato de sua gentileza atual aludir à redenção. No mais, se trata de uma figura praticamente insossa, existente para oferecer um contraponto masculino de candura e disponibilidade à sofrida Clara. Pena que o talento do astro francês seja desperdiçado num papel unidimensional, existente apenas como muleta.

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As incongruências se avolumam ao longo de Um Inverno em Nova York. No princípio, Clara precisa convencer os filhos de que errar pela cidade estranha é menos prejudicial do que permanecer num lar conturbado pela violência doméstica. Porém, logo que o motivo da fuga é explanado ao espectador, os pequenos passam a demonstrar ojeriza do pai policial. O contorno de fábula está justamente nutrido pela prevalência da ingenuidade que, inclusive, concentra o mal possível à Clara e aos meninos na figura do marido/pai abusador. É como se eles, a despeito das perambulações e das noites dormindo no carro e ao relento, fossem magicamente protegidos dos demais perigos da localidade, conduzidos ao êxito pela estrela da boa fortuna encarregada de os colocar no caminho de pessoas boas que entendem o peso do sofrimento. O resultado é próximo de um conto da carochinha, o que diminui bastante a ressonância dos tantos dramas pessoais, para além dessa dinâmica viciada de mostrar contratempos e rapidamente administrar a bondade como antídoto.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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Grade crítica

CríticoNota
Marcelo Müller
4
Bruno Carmelo
3
MÉDIA
3.5

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