Crítica


2

Leitores


13 votos 5

Onde Assistir

Sinopse

Callie e Joseph levam uma vida pacífica administrando a fazenda e decidem se casar. No entanto, quando recebe o controle da empresa familiar, Joseph é obrigado a retornar à cidade. Callie o acompanha nesta viagem, descobrindo um passado escondido do noivo. O relacionamento dos dois passa a enfrentar novas provações.

Crítica

Callie (Lauren Swickard) está prestes a se casar num palacete com o bilionário dos seus sonhos, mas está chateada porque gostaria de ter maior envolvimento na organização da cerimônia. Joseph (Josh Swickard) recebe de presente a gestão de uma empresa rentável e bem estabelecida, mas reclama com os acionários por não ter sido avisado com antecedência desta surpresa. A pequena Hannah (Natalia Mann) se sente abandonada pela irmã mais velha quando esta viaja à cidade, lamentando-se aos cuidadores amorosos que passam dia e noite garantindo o seu bem-estar. O gerente da fazenda, Manny (David del Rio), consegue enfim o pedaço de terra com que sempre sonhou: bastava pedir, algo que ele tinha esquecido de fazer até então. Neste percurso, chega à sua porta uma mulher bela e solteira, de gostos semelhantes aos seus, que se torna sua namorada instantânea. Os problemas criados por Um Brinde ao Natal: Luzes da Cidade (2021) representam um exemplo claro dos white people problems, além de ilustrarem os conflitos íntimos de gente riquíssima e bela, responsável por negócios capazes de se autogerenciar com eficiência. Os funcionários são amigáveis e sorridentes, assim como os clientes. Mas Callie nunca pretendeu se casar num vestido de US$ 2,2 mil, poxa. Ninguém respeita as dores desta fazendeira sofrida.

Em termos de estrutura, a aventura romântica dá um tiro no pé: ao criar personagens lindos, amigáveis e amorosos, enfrenta dificuldade para criar qualquer conflito digno deste nome. Joseph precisa ir à cidade, o que fazer? Basta alugar um helicóptero e um carro de luxo para passear na capital. Callie gostaria de viajar com ele, e agora? Simples, deixa-se a gestão da fazenda com os amigos-funcionários contentes em efetuar o dobro do trabalho em nome da alegria dos patrões cansados. Amigos e conhecidos surgem por acaso em festas e encontros nas ruas, enquanto antigas namoradas do empresário aparecem em instantes convenientes. Tamanha idealização prejudica o potencial dramático do conjunto, resumido ao quiproquó de acionários descobrindo a fome no mundo, e cancelando a cerimônia caríssima em nome da paz mundial. Os pobres seguirão pobres, mas quem se importa? Ao menos, a dupla e seus amigos-assistentes terão a consciência limpa no final, por esbanjarem menos do que poderiam. O roteiro se resume a uma jornada moral, onde herdeiros possivelmente gananciosos descobrem as vantagens de um dinheiro “limpo”, discreto, sem despertar dúvidas. Callie efetua meia dúzia de ligações desejando feliz natal aos clientes milionários, e salva a empresa. Quem não gostaria de habitar um ramo empresarial tão dócil quanto este?

A estética acompanha a perspectiva cor-de-rosa da sociedade. O filme se abre com belas paisagens do campo, filmadas sob raios do sol, banhadas por trilha sonora melódica e agradável. Chegando à cidade, a vista se atém aos arranha-céus dos prédios chiques e às suítes de luxo. Mesmo um centro de acolhimento para pessoas em situação de rua é desprovido de sujeira, bagunça ou problemas sérios: encena-se o nascimento de Cristo no local, com um burrinho singelo ao canto, diante de uma plateia silenciosa. Embora jamais se configure explicitamente enquanto produção cristã, o romance da Netflix possui os traços de um ensinamento de virtudes típico do catolicismo pré-renovação carismática: o casal se beija na cama ao som de canções gospel (“O bom senhor me mantém seguro”), e a protagonista prontamente perdoa as inúmeras mentiras do futuro marido em nome de seu bom coração: “O perdão é um superpoder”, ensina a mãe. Submissão feminina; controle da casa pelo homem; natureza convertida em símbolo de pureza, e a cidade, em signo de pecado e perdição: está lançado o coquetel para um amor clássico, heterossexual e branco, onde as poucas figuras negras, asiáticas e latinas ocupam funções de coadjuvante ou figurante — uma vocação servil em relação aos verdadeiros heróis.

O destino constitui outro fator capaz de associar o longa-metragem à crença num controle transcendente. A jornada da dupla central é formada por encontros acessórios e golpes do acaso, sinal de que o cosmos conspira em favor dos dois. A turista especialista em animais do campo visita a cidade até encontrar um burrinho necessitando de ajuda. A vilã Victoria (Laura James), uma figura sedutora vestida de vermelho, em oposição à angelical protagonista, irrompe porta adentro quando cenas precisam de tensão. Assim que pisa na cidade, todas as mulheres nocivas e malvadas vêm aos pés do noivo cobiçado, dando tapas em sua bunda e alisando seu peito. É claro que o pecado decorre destas Evas perversas, ao contrário do bom Adão desejando somente se casar com a noiva de seus sonhos. Se a previsibilidade representa um elemento típico das comédias românticas, aqui ela se acentua pelo teor moral da redenção religiosa. Joseph já foi um sujeito conquistador e desbocado, mas hoje se adotou o caminho “correto" ao escolher o relacionamento monogâmico com uma fazendeira recatada. Callie quase ficou solteira após perder o noivo, mas enfim decide se casar com outro rapaz para não ficar sozinha. “Boys will be boys”, repete o discurso do machismo estrutural norte-americano: “garotos são assim mesmo”. Já as garotas se dividem entre puras (a heroína literalmente se veste de Virgem Maria, descobrindo-se a estrela perfeita para o papel) e prostitutas (Victoria e Ainsley, ambas vestidas de vermelho, usando roupas curtas e propensas à sedução pelo dinheiro).

Por fim, Um Brinde ao Natal: Luzes da Cidade proporciona uma ode à caridade, quando empresários poderosos percebem que uma parcela insignificante de seus lucros poderia financiar projetos assistenciais. Diante de um discurso potente acerca do desapego material, apiedam-se como bons cristãos, oferecem algumas migalhas (o par de tênis ao final) e se dão por redimidos: “Esse é o homem por quem me apaixonei”, declara a princesa diante do príncipe. Nunca se menciona qualquer forma de justiça social — miseráveis continuarão miseráveis, os tipos na cobertura dos prédios seguem ocupando as coberturas dos prédios. No entanto, ao vender um pedaço minúsculo de terra ao rapaz que lavra seu terreno e cuida sozinho da vinícola na ausência de Callie, o espectador é levado a acreditar que a verdadeira bondade provém da patroa generosa, ao invés do trabalhador confiável. O romance funciona enquanto manutenção do status quo político e artístico: predominam os discursos a respeito da generosidade burguesa, da pureza das noivas do campo, e da santidade do casamento. Já o cinema se reveste da função ideológica de pregar tais ensinamentos ao público contemporâneo, numa forma de catequese da família patriarcal. E viveram felizes para sempre, com direito a uma surpresa final, preparando a saga ao terceiro filme e aprofundando a função percebida como essencial às mulheres dentro de um relacionamento.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
avatar

Últimos artigos deBruno Carmelo (Ver Tudo)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *