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Sinopse

Isabella, Jonata e Pedro estão fechados em casa durante um fim de semana. Angustiados com a Covid-19 e com as dificuldades financeiras, decidem sair pelas ruas de São Paulo para espairecer. A caminhada permite conhecer muitos indivíduos em situação semelhante, provocando situações tragicômicas e fantásticas.

Crítica

A premissa de Três Tigres Tristes é curiosa: enquanto a maioria dos “filmes de pandemia” preferiu a estrutura de poucos personagens dentro de um apartamento, facilitando a produção, Gustavo Vinagre decide levar seus três protagonistas a um passeio por São Paulo. Entre comércios e parques, encontram-se com desconhecidos, até todos se reunirem numa noite catártica. Em outras palavras, o diretor segue na contramão da estrutura de imitações, privilegiando o excesso. Parte do efeito catártico dessa comédia decorre da abertura ao outro, ao absurdo, e ao prazer de frequentar espaços abertos e “respirar um pouco de poluição” após tanto tempo de isolamento social. O roteiro se concentra num trio de minorias em situação financeira desfavorável: um garoto que se prostitui e faz espetáculos eróticos pela webcam; o sobrinho negro e soropositivo, cujo tratamento do HIV ocorre em outra cidade para evitar o preconceito; e uma jovem transexual se preparando para cursar o ENEM. A caminhada facilita a descoberta de outras figuras negras, periféricas e LGBTQIA+: o discurso privilegia a circularidade de afetos entre esses grupos em particular, expressos de maneira deslocada das normas conservadoras. Se o beijo é proibido pela pandemia, nada impede de estralar as costas de um anônimo conhecido no parque. Se precisamos ficar a 1,5 m de distância do outro, ainda podemos pegar uma trena, medir o espaço e sentar juntos para o chá. A jornada imagina formas tragicômicas de permanecer juntos, ainda que afastados.

A abertura à fantasia ocorre de maneira satírica. O filme se cola à linhagem veloz das redes sociais, dos programas de televisão, dos memes e referências da cultura pop. Assim, Inês Brasil interpreta uma onça-pintada; um porquinho-da-índia ganha sua versão drag queen; os personagens assistem a vídeos no Instagram e disparam bordões de Ru Paul’s Drag Race. A sugestão ridícula de que, ao ver dois homens se beijando, uma criança se tornaria gay, é concretizada de maneira hilária para fins de caricatura. De repente, xícaras ganham voz e olhos, e os objetos se comunicam com a dona de um antiquário. Um dos principais méritos de Três Tigres Tristes se encontra na capacidade de unir uma linguagem doce e quase infantil à representação da sexualidade adulta. Some o desejo de chocar, ou de confrontar o espectador: Pedro (Pedro Ribeiro) faz suas performances eróticas em off, assim como os atendimentos sexuais a clientes fragilizados (Everaldo Pontes) ficam restritos à imaginação do espectador. Agora, a homossexualidade, a transexualidade e os corpos de pessoas negras e soropositivas podem ocupar uma fantasia lúdica onde doces de feijão têm olhos e sofrem ao ser comidos, e mochilas vazias, transparentes e dotadas de orifícios se transformam em lares convenientes para um bichinho de estimação. A questão das sexualidades e identidades de gênero não-hegemônicas se descola de um tema “adulto” e grave, permitindo brincadeiras, descontração. A leveza, neste caso, constitui um ato político.

Através da caminhada pelo centro de São Paulo, o roteiro pretende denunciar o passado de escravidão e racismo incrustado nos prédios da cidade, pouco conhecido pelos moradores. Embora este objetivo seja importante para trazer alguma gravidade à obra levíssima, o segmento soa deslocado, costurado de maneira pouco orgânica aos interesses dos heróis. Quando pretendem denunciar mazelas sociais e as derivas do capitalismo, os diálogos adquirem um teor mais escrito, formal, e engessado na boca dos atores — até porque a pandemia impede que a produção visite de fato os espaços históricos mencionados pelo trio. O dispositivo fantástico da amnésia provocada pela nova onda de Covid também surte efeito mínimo na trama, ainda que a perda de consciência de si e do outro fosse uma metáfora excelente para discutir o Brasil atual. Inúmeros dispositivos cênicos e poéticos se sucedem na obra, com melhor ou menor sucesso. Para cada gag puramente visual (o indivíduo preso a uma bolha, no fundo do enquadramento) e provocação pertinente (a escolha de Julia Katharine para o papel da mãe cisgênero e preconceituosa), há opções de menor impacto na construção da trinca central (a piada educativa do “indetectável = intransmissível”, relacionada ao HIV). De qualquer modo, Vinagre oferece sua obra mais generosa até agora, demonstrando carinho e empatia até pelos personagens secundários em participações curtas — Gilda Nomacce, em particular, integra à perfeição este imaginário descolado do real.

Por fim, tudo acaba em música, ao invés de pizza. Esqueçamos a impossibilidade de nos reunir: Três Tigres Tristes se encerra numa festa em casa, regada a apresentações espontâneas, orgias simbólicas (cada um no seu canto, entenda bem) e afeto desmesurado, compartilhado com tudo e todos. Pedro revê seu amado morto; Jonata (Jonata Vieira) se reúne com o amado amnésico; Isabella (Isabella Pereira) vive muito bem sozinha, obrigado, com seus cigarros. A conclusão encontra disposições alternativas de se expressar em comunidade durante épocas pandêmicas, o que passa pela música, a performance, os desenhos de cardumes, a composição teatral. Ao invés de enxergar na arte um escapismo ilusório, destinado a aliviar os tempos angustiantes, o cineasta acredita pelo contrário que estas práticas nos conectam de forma bruta com as pessoas e o espaço urbano. Portanto, o cenário mágico não se presta a negar e substituir o real, e sim a transformá-lo, ativa e politicamente. Trata-se de atos de criação coletivos, encerrados numa cantiga infantil contemporânea a múltiplas vozes, e na representação de um rio poluído, perto do qual os jovens serão divas ou capitães, como quiserem. Nesta comédia, a arte transforma o mundo de maneira concreta, absurda, inconsequente. Mencionam-se as mortes pelos vírus (HIV e Covid), mas festeja-se a vida desregrada em tempos de privações.

Filme visto no 72º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2022.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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