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Sinopse

Cinco personagens com vivências, profissões e experiências bastante diferentes têm em comum o fato de suas vidas serem atravessadas pela transexualidade.

Crítica

Em 2018, Émerson Maranhão lançou nos festivais de cinema o belo curta-metragem Aqueles Dois, focado na experiência de vida de Kaio Lemos e Caio José, dois homens transexuais. O formato sucinto cabia muito bem na proposta de um curta, que incluía fragmentos poéticos dos rapazes num riacho. Passados três anos, após enfrentar o conservadorismo do governo federal brasileiro - que tentou censurar este novo projeto num edital, devido ao tema -, ele apresenta o longa-metragem Transversais (2021). O cineasta recorre novamente a Kaio e Caio, além de outras mulheres trans, e da mãe de uma adolescente transexual, para efetuar um panorama mais amplo e ambicioso destas subjetividades no Brasil atual. A premissa retira estes homens e mulheres de uma perspectiva marginal, concentrando-se em diretoras de escola, antropólogos e enfermeiros de carreira bem estabelecida, inseridos numa família amorosa. Apesar de um rápido letreiro inicial relembrando a altíssima taxa de homicídios de pessoas trans no país, o ponto de vista esbanja otimismo: conhecemos o painel de personalidades pela perspectiva da superação e da conquista individual. O documentário se foca num mundo onde, desconsiderando eventuais comentários depreciativos aqui e ali, a transexualidade se insere com naturalidade no meio social.

É evidente o respeito dos criadores pelos protagonistas, acolhidos no espaço de suas casas, abrindo o coração ao compartilharem episódios comoventes de discriminação ou aceitação. No entanto, embora se comemore o olhar empático e a conquista política de sua chegada às salas de cinema, o resultado chama atenção por outros fatores. Ele se baseia na estrutura profundamente convencional de talking heads, ou seja, as “cabeças falantes”. Os personagens se sentam em seus sofás e discursam para a câmera, enquadrados no centro do quadro, em close-up. A única proposta de fluidez se encontra no procedimento curioso de começar a conversa focando-se na expressão dos protagonistas para, então, deslocar a câmera para as suas mãos. De resto, nunca se busca qualquer dinamismo através da montagem ou da concepção das imagens. Ainda que falem por si próprios, os homens e mulheres trans conduzem uma jornada em voz indireta, descrevendo fatos passados e conquistas que não se traduzem em imagens, nem encontram uma alternativa de representação. As peles brilham e transpiram sob os refletores, numa textura digital tão exageradamente nítida que busca cada poro e marca na pele dos entrevistados. Quando evocam momentos dolorosos, a trilha sonora de pianos tristes sublinha o teor emocional evidente.

Sendo uma obra de falas, a imagem se torna secundária: o autor dispensa sequências carregadas de ambições estéticas próprias - o projeto se interessa mais pelo tema do que pela maneira de apresentá-lo ao espectador. Os depoimentos convergem num discurso único, sem variedade nem divergências internas. Todos evocam o preconceito, mas destacam a capacidade de superação. Valorizam as lutas dos movimentos organizados; dizem-se mais fortes e felizes hoje; festejam a aceitação dos pais. Curiosamente, o roteiro dedica profunda atenção ao acolhimento familiar, porém deixa em segundo plano a inserção profissional, os relacionamentos amorosos, as amizades. Maranhão estima necessário conversar com os pais da melhor amiga de uma mulher trans, que defendem o caráter idôneo e prestativo da moça. Em contrapartida, evita discutir os responsáveis pela discriminação, as origens do problema, as maneiras de superá-lo, a relação com a política institucional, a evolução entre sucessivos governos. A inserção social de indivíduos transexuais se converte numa questão moral, ao invés de política, razão pela qual a narrativa insiste nos retratos tão ternos quanto edulcorados. O autor faz o possível para evitar atritos e desconfortos, seja nos testemunhos, seja na construção das imagens. 

Deste modo, promove um discurso consensual, marcado por ensinamentos amplos: é preciso acolher pessoas trans, tratá-las bem, reconhecê-las por sua riqueza e força. “Mais amor, por favor”, parece dizer a cada cena. Ora, o teor se mostra tão positivo quanto superficial diante da complexidade do tema, da questão da identidade de gênero e da orientação sexual, e mesmo da exclusão no interior da comunidade LGBTQIA+. O acolhimento não pode se reduzir à força de vontade e à conscientização das maiorias quanto ao valor de sujeitos trans. Este preceito chega a incomodar: por que seria necessário “provar" as habilidades destes personagens para justificar seu mérito? Homens e mulheres trans possuem direitos por serem cidadãos como quaisquer outros, ao invés de bons professores e pesquisadores. Mesmo desprovidos de tais qualificações, atravessando percursos menos virtuosos, mereceriam respeito igual. A valorização dos protagonistas em chave meritocrática sugere tacitamente que, sem o olhar elogioso, não seriam dignos de apreciação por sua simples humanidade. Esta percepção transparece um dos principais problemas do projeto: o fato de ser um documentário sobre a transexualidade voltado às pessoas cisgênero, dotadas de conhecimento nulo sobre o tema.

Isso significa que a estética abraça um formato bem ex-pli-ca-di-nho, com som limpo e falas em uníssono, solicitando ao espectador que deixe os preconceitos de lado, abrace os conhecidos trans, trate-os bem. Afinal, são muito amigas e prestativas - não viu o depoimento dos pais da melhor amiga? Transversais desperta questionamentos sérios em termos de legitimidade e da autolegitimação: primeiro, por condicionar o acolhimento da diversidade à boa vontade das maiorias, a quem se pede, com pianos doces e sorrisos no rosto, um acréscimo de afeto. Segundo, por acreditar que a nobreza de seu tema justifica o formato próximo da reportagem televisiva, sem produzir metáforas, poesias, instantes de respiro, choques internos pela montagem. Nem o belo riacho de Aqueles Dois encontra equivalência no longa-metragem de entrevistas posadas, em tom professoral, com protagonistas bem maquiados e preocupados em apresentar seu melhor nível de português às câmeras. Falta intimidade entre direção e convidados para produzir um efeito despojado, íntimo, propenso a valiosos imprevistos. Falta retirar a transexualidade da condição de objeto de estudo, permitindo que os indivíduos se mostrem em sua pluralidade, sejam eles de classe média ou baixa, de alta ou baixo grau de passabilidade cis, com pontos de vista divergentes a respeito da política e das contas a prestar às vozes dominantes.

Filme visto online na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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