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Sinopse

Tralala tem 48 anos e vive cantando pelas ruas de Paris. Certo dia, uma jovem misteriosa lhe deixa uma mensagem e desaparece. O artista parte em busca da mulher que conheceu e, no caminho, encontra uma senhora certa de que Tralala é, na verdade, seu filho que desapareceu 20 anos atrás. Surpreso pela revelação, ele aceita interpretar este papel.

Crítica

Tralala (Mathieu Amalric) é como um fantasma. Esse artista sem sucesso vive sozinho em Paris, onde se apresenta nas ruas para público nenhum. Ele está prestes a ser despejado do cortiço onde mora, algo que não lhe incomoda muito. Para o bem ou para o mal, este homem de 48 anos está livre de vínculos familiares, amorosos e financeiros. O cantor desafinado poderia simplesmente desaparecer sem deixar traços; e de fato o faz. A aparição inesperada de uma jovem em seu caminho, dizendo: “Sobretudo, não seja você mesmo” se converte em mantra ao herói que parte a esmo, destinado a encarnar a deia de "ser outro". Existe um aspecto messiânico em Tralala, espécie de pastor sem rebanho, sonhador sem objetivos precisos. Uma figura tão etérea constitui um desafio para ocupar o posto de protagonista de um longa-metragem, mas os irmãos Arnaud Larrieu e Jean-Marie Larrieu abraçam a suspensão do naturalismo próxima do absurdo e do realismo fantástico. O sujeito de meia-idade se converte numa bandeira em nome da subversão das regras, seja sociais, dos musicais, dos road movies, das histórias inspiradoras, do cinema clássico em geral. Os diretores possuem o vigor e o senso de diversão de dois jovens autores sem contas a prestar à indústria. Assim, investem numa traquinagem divertida e improvável, à imagem de seu protagonista.

O aspecto musical se destaca por privilegiar canções “sujas”, de forma e estrutura caótica, com letras improváveis e melodias dissonantes. A voz de Amalric está longe de servir a um espetáculo da Broadway — assim como aquela de Mélanie Thierry, Maïwenn e Josiane Balasko —, numa escolha proposital dos criadores. O público tem o caminho da identificação facilitado no sentido de se deparar com pessoas que cantam por desejarem cantar, ao invés de possuírem talentos excepcionais para tal. Estas figuras fracassadas poderiam corresponder a qualquer um de nós, o que contribui a romper com o pressuposto de espetáculo típico dos musicais formatados da indústria. O roteiro proporciona longas cenas sem uma canção sequer, e depois introduz três canções numa única cena, uma após a outra. Às vezes a cantoria ocupa um espaço diegético (ou seja, Tralala se apresenta a pedestres), ora carrega o aspecto romântico de indivíduos que saem cantando pelas ruas, para si mesmos. Alguns personagens dançam e se expressam encarando a câmera (e o espectador), outros parecem não perceber que o dispositivo existe. Estas figuras ocupam mundos distintos, de motivações e configurações próprias. Talvez todos sejam fantasmas, afinal.

A narrativa se instaura de fato a partir da realização da farsa: o herói é confundido com o filho de uma família em Lourdes, desaparecido há 20 anos. Dócil e atrapalhado, o músico aceita encarnar esta figura, ainda que jamais tire proveito da situação. Tralala se torna o fruto do que os outros fazem dele: querem demolir sua casa? Tudo bem, ele fica na rua. Jogam seu violão no rio? Sem problema, ele arranja um pequeno banjo. Insistem que ele seria Pat, o garoto sumido? Claro, por que não? O homem navega entre a passividade completa e uma abertura generosa ao acaso e ao outro: ele está disposto a acatar qualquer vento que o carregue. Os coadjuvantes desempenham uma função igualmente ingênua: a pretensa mãe o aceita sem reservas; as duas namoradas de antigamente ardem de desejo pelo recém-aparecido; o pretenso irmão se alegra; os novos sobrinhos se inspiram nele. Num filme hollywoodiano, a farsa carregaria sérias implicações morais, e a revelação acarretaria em dores profundas aos envolvidos. Na obra francesa, as crenças e descrenças operam sem traumas significativos: personagens que juravam pela identidade de Pat confessam, na sequência seguinte, que nunca acreditaram na ideia do filho ressurgido. Resta a vontade de crer, uma singela suspensão da descrença. A estrutura se assemelha a um faz de conta entre amigos.

A religião poderia desempenhar papel importante neste registro: a maior parte da aventura se desenvolve no centro de peregrinação religiosa, por onde circulam freiras e padres. Por este prisma, o retorno de Pat se converteria um milagre, sendo necessário possuir fé e desprezo por fatos para abraçar a ideia de que Tralala corresponderia ao rapaz de antigamente. No entanto, os cineastas evitam coincidir a religiosidade com ignorância, representando com carinho este mosaico de figuras crédulas. A única conexão com o realismo e o século XXI decorre do período da pandemia: os passantes portam máscaras em lugares públicos, evidenciando o decorrer da trama durante a Covid-19. O fator jamais se converte em motor de conflito, ou seja, nunca se discute o coronavírus, nem as medidas de segurança. As pessoas somente aparecem com máscaras, algo que, dentro deste contexto fantasista, talvez pudesse ser tomado por uma excentricidade, algum elemento da moda nesta cidade levemente desconectada do resto da França. Para os espectadores atuais, a referência à Covid se torna evidente. Para um espectador futuro, talvez o elemento provoque estranheza - apenas uma a mais. O filme serve, voluntariamente ou não, a sublinhar a artificialidade destes procedimentos obrigatórios aos nossos tempos. Deste modo, evitam normalizar a morte e os contágios. Há um fundo amargo por trás da obra solar. 

Tralala oferece uma experiência mais curiosa do que propriamente bem-sucedida. Talvez as canções sejam pouco memoráveis em seus arranjos simples e vozes amadoras, enquanto o quiproquó da identidade falsa evita criar tensão. No entanto, alguns jogos de imagens ressaltam a inteligência dos diretores - vide as cenas em que Tralala/Pat escuta uma canção que ele mesmo teria gravado na juventude, embora as vozes de ambos sejam totalmente distintas; e a conversão sucessiva de Virginie (Galatéa Bellugi) em fada madrinha, Virgem imaculada, interesse amoroso, filha e cúmplice. A sequência com Jeannie (Mélanie Thierry) dentro da loja de souvenirs impressiona pela coreografia e trabalho de câmera, e o cantor Bertrand Belin impressiona na função de ator. Já o versátil Mathieu Amalric defende o herói com uma generosidade comovente, sem ridicularizá-lo nem idealizar a jornada quixotesca. A ciranda de afetos sustenta o interesse de uma obra pequena, privilegiando o decalque do real à construção de enquadramentos ou sons. Resta um conto de fadas sem príncipes nem princesas, apenas mendigos, pequenos comerciantes e artistas fracassados. Os irmãos Larrieu embutem magia nas faixas menos privilegiadas da sociedade, sem investigar as origens dessa situação, nem suas consequências. Ao privilegiarem o acaso, permitem que os dilemas surjam numa cena e desapareçam no momento seguinte, sem deixar traços - como um destes sonhos malucos que temos de vez em quando, e que desaparecem da lembrança pouco depois de abrirmos os olhos.

Filme visto no 12º Festival Varilux de Cinema Francês, em novembro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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Bruno Carmelo
6
Alysson Oliveira
8
MÉDIA
7

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