Crítica
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A arte geralmente reflete o seu tempo, dialoga com o seu presente e, assim, gera documentos de sua época. Os chamados filmes de pandemia foram aqueles que tentaram pensar um mundo sob os efeitos do alastramento da Covid-19. No futuro, tendem a ser parte fundamental da arqueologia de imagens e assuntos que fervilharam durante essa crise mundial de saúde. Alguns deram outro significado para os Screenlife ou computer screen film — como são chamados os filmes em que todos os eventos acontecem na tela de um computador ou de um dispositivo móvel —, uma vez que as interações tinham de ser o menos físicas possível em prol da segurança; outros fizeram reflexões ora rasas, ora profundas sobre o isolamento, buscando na filosofia e em outras áreas do conhecimento suas bases de abordagem; houve os que estudaram os efeitos psicológicos da impossibilidade de sair de casa; e ainda aqueles que pensaram a cidade enquanto espaço deserto. Enfim, foram inúmeros os vieses. Todo Mundo Já Foi pra Marte é a animação que encerrou o 11º Olhar de Cinema de Curitiba. E, talvez, para início de conversa, há certo desajuste no timming de apresentação do longa-metragem para a plateia. Afinal de contas, em meados de junho de 2022, a pandemia está bem mais controlada e o público está até um pouco farto de rememorar como foram aqueles meses/anos de isolamento marcados por angústias e afins.
No entanto, excetuando essa questão de timming, Todo Mundo Já Foi pra Marte possui uma premissa de produção mais interessante do que o seu resultado. Ao todo, 37 animadores cearenses foram convidados para compor um mosaico de vinhetas com técnicas, texturas, assuntos e tendências completamente diferentes. Não há uma trama propriamente dita, mas uma costura de retalhos que não chega a constituir um painel suficientemente interessante. As menções ao planeta vermelho servem para criar uma moldura lúdica que, minimamente, atue como fio condutor para os fragmentos. Há uma exuberância visual na alternância de animações que em quase tudo parecem divergir de suas predecessoras e também das sucessoras. O efeito é que não existe uma unidade, quiçá um porquê interligando pedaços que parecem costurados aleatoriamente. A produção assinada por Telmo Carvalho poderia mergulhar radicalmente no aspecto sensorial desses mundos imaginados, mas o que vemos ao longo de quase 100 minutos é uma sucessão de pequenas histórias – algumas têm a ver mais diretamente com o momento em que vivemos, outras nem tanto. Há trechos que simplesmente são viagens quase lisérgicas e pouco profundas; outros trazem à tona os personagens do nosso cotidiano. O presidente Jair Bolsonaro aparece em alguns segmentos, sempre atrelado a uma ideia de morte iminente.
Às vezes parece que Telmo Carvalho vai utilizar pontos e comum para fazer as historietas ressoarem em conjunto. Por exemplo, quando emparelha as visões de Jair Bolsonaro para sinalizar o responsável pelo crescente número de mortos brasileiros pela Covid-19 – uma dessas vinhetas mostra a morte tendo o semblante do político. Essa atração também acontece quando o assunto evidentemente é a angústia decorrente do isolamento. Alguns dos 37 animadores lançam mão de stopmotion, rotoscopia, pixelation, entre outras técnicas, a fim de ponderar acerca das próprias apreensões diante do cenário caótico que o Brasil viveu, pelo menos, durante dois anos. Telmo poderia ter investido melhor nas similaridades entre as perspectivas tão distintas para criar algo menos drasticamente segmentado. E nisso voltamos à questão da falta de timming. Sabemos que finalizar um longa-metragem num país que enfrenta um severo desmonte cultural não é algo fácil (mais na seara do baixo orçamento), portanto é evidente que o filme ganhou o mundo apenas quando foi possível. Mas, estamos nos relacionando com o filme no agora, nesse presente em que o contingente de imunização no país permite certas liberdades. Esse passado ainda muito recente registrado em Todo Mundo Já Foi para Marte soa, hoje, pouco atrativo e quase anacrônico. Talvez uma sessão futura, dentro do contexto dos chamados filmes de pandemia, confira a ele um lugar menos deslocado dentro da nossa rica história.
Escrever sobre Todo Mundo Já Foi para Marte como uma unidade é desafiador, especialmente porque ele não “se comporta” enquanto uma colcha feita de retalhos, mas como retalhos colados arbitrariamente na tentativa (será?) de formar uma colcha. Não faria muita diferença se, num exercício de remontagem, alguns fragmentos fossem trocados de lugar, duplicados ou mesmo simplesmente deletados. Essa operação dificilmente prejudicaria o filme como ele se apresenta, sobretudo porque não há nele a composição de um quadro completo. A ideia do mosaico é colar pecinhas com pouco valor em si, mas que juntas formam algo de acordo com a sua disposição. Telmo Carvalho faz o contrário, ou seja, enfatiza a importância das pecinhas e não oferece um quadro formado a partir da localização das mesmas. Ainda nessa analogia dos mosaicos, eles se justificam quando o apreciador se afasta alguns passos e consegue visualizar a imagem formada a partir das suas frações menores. Será que o gesto de afastamento, aqui compreendido como uma revisita alguns anos à frente, poderá nos revelar uma experiência menos desprovida de intensidade e capacidade de mobilização? A pouca probabilidade dessa especulação se concretizar positivamente se dá, justamente, pela dificuldade do realizador (organizador?) construir um todo a partir das suas breves, coloridas, distintas e curiosas partes.
Filme assistido durante o 11º Olhar de Cinema de Curitiba, em junho de 2022.
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