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Sinopse

Heshmat, um marido e pai exemplar, acorda cedo todos os dias. Onde ele vai? Pouya não pode imaginar matar outro homem, mas lhe dizem que deve fazê-lo. Javad não sabe que propor à sua amada não será a única surpresa no aniversário dela. Bahram é médico, mas incapaz de praticar medicina.

Crítica

Não Há Mal Algum, filme persa-alemão-tcheco, demora a revelar seu verdadeiro tema. Durante todo o primeiro capítulo – entre quatro histórias, no total – o diretor Mohammad Rasoulof esconde os motivos pelos quais observamos a vida de Heshmat (Ehsan Mirhosseini), um pai atencioso, marido um pouco machista, porém gentil com a esposa, e funcionário exemplar. Em cerca de vinte minutos, acompanhamos o “Iranian Dream” da classe média-alta, apesar de alguns indícios apontarem a existência de algo errado neste homem: ele dorme sob efeito de comprimidos, e demonstra certa reticência em ir ao trabalho. Então, com algum esforço, o filme revela subitamente o seu segredo – que seria impossível de esconder neste texto, visto que se trata do tema central da obra, repetido nos demais episódios: Heshmat possui como função executar homens condenados à morte. Ou seja, somos convidados a enxergar a figura do marido comum e carinhoso num sujeito cuja profissão consiste em provocar mortes alheias.

Esta provocação interpela o espectador, perguntando-lhe: você ainda se identifica com este homem depois de saber da nova informação? Pensando retroativamente, teria gostado dele se soubesse desde o início? Não Há Mal Algum continua, nos outros três segmentos, a lidar com a responsabilidade ética de homens que matam outros por encomenda. Eles seriam também culpados dos atos, ou apenas estavam cumprindo ordens? “Se o homem foi condenado à morte, ele deve ter feito algo para estar ali”. A frase é repetida em três ocasiões, partindo do pressuposto que a polícia e o sistema judiciário funcionam sem falhas nem perseguição político-ideológica, e que os demais cidadãos, aqueles sem envolvimento criminal nem condenações, não possuem qualquer responsabilidade por isso. “Não é problema meu”, em suma. Ora, ao fio das narrativas, um tanto semelhantes em discurso e ponto de vista, o cineasta insiste que os danos psicológicos provocados nestes homens são irreparáveis e que, por constituírem uma passagem obrigatória dentro do treinamento militar no Irã – por sua vez, um serviço compulsório a todos os homens -, eles produzem uma geração de cidadãos marcados por mortes que muitas vezes não desejavam cometer.

Apesar do caráter pedagógico do discurso – com exceção da primeira história, os outros três heróis são executores relutantes ou arrependidos -, Não Há Mal Algum impressiona pelo tamanho e qualidade da produção. As imagens em scope são impecavelmente iluminadas e montadas, e o diretor efetua uso discreto, porém muito bem controlado, das dezenas de cenários. Mesmo contendo a aparência de pequenos contos morais, minimalistas e focados num único conflito, os segmentos ainda ostentam o porte de um blockbuster. A qualidade do elenco também impressiona: com raras exceções (a composição frágil de Mohammad Valizadegan no capítulo três), os atores estão sóbrios em seus papéis, fruto de um trabalho coeso de direção ao longo dos segmentos. Ainda que trabalhe dentro de um caráter exemplar, transformando cada história num catálogo de danos psicológicos, o diretor faz questão de construir cenas de notável naturalismo no que diz respeito ao retrato da vida urbana ou das amizades agridoces dentro do exército. Rasoulof nunca aposta no fetiche da ação, nem transforma a morte em algo empolgante, até porque seu foco não se encontra nos executados, e sim nos executores.

Qualidades estéticas à parte, a obra se enfraquece por uma organização no mínimo confusa dos segmentos. O capítulo 1, “There is no evil”, se inicia com forte música de suspense e carrega uma ironia mordaz, até a já citada revelação final. O capítulo 2, “She said: ‘You can do it’”, ainda traz alguma dose de ironia, porém destituída de suspense e abraçando a possibilidade do cômico. Já os capítulos 3 e 4, “Birthday” e “Kiss Me”, enveredam pelo melodrama tradicional. Unidos pelo tema, eles divergem bastante em questão de tom, o que provoca ruídos no filme como um todo: primeiro, não há sentido em explicitar tanto a questão da pena de morte para voltar a fazer suspense sobre o conflito no episódio final – é claro que o personagem de trauma indefinido estará associado às execuções. Segundo, o quarto capítulo se anuncia enquanto sequência do segundo, apesar de os dois outros não possuírem qualquer conexão clara entre eles. Terceiro, enquanto a discussão se torna puramente ética durante os episódios um e três, ela adquire contornos metafóricos no segundo episódio (o papel de "Bella Ciao" sugerindo uma pequena revolução interna) e no quarto episódio (quando a metáfora da cadeia animal e o encontro com uma raposa se encarregam de representar o homem perseguindo o próprio homem).

Em outras palavras, Não Há Mal Algum busca diversidade de tons e gêneros, talvez para compensar o discurso idêntico de todos os trechos. Caso Rasoulof buscasse novos pontos de vista, incluindo militares orgulhosos de sua função ou o ponto de vista das mulheres sobre a atividade dos maridos, talvez tivéssemos um painel humano mais diversificado. No entanto, o filme martela a mensagem de que as mortes são desumanas não apenas para os homens assassinados, mas para aqueles condenados a assassiná-los. Além disso, o faz através de uma estrutura desconexa, dentro da qual alguns episódios se revelam melhores do que os outros – o capítulo três sendo o mais problemático de todos. Ora, por que fragmentar a narrativa em quatro partes apenas para reproduzir o mesmo ponto de vista político em todas elas? Teria sido mais proveitoso se basear numa destas histórias e desenvolvê-las, aprofundando os personagens coadjuvantes e as relações de culpa dos homens envolvidos; debatendo o papel das altas esferas do exército e do governo na manutenção desta estrutura. O resultado torna-se tão claro quanto o diretor o pretende, ainda que perca parte considerável de sua complexidade na busca pela didática.

Filme visto no 70º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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