Crítica
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Sinopse
Em A Sala dos Professores, ao tentar solucionar uma série de furtos na escola onde leciona, a professora Carla acaba flagrando um crime e, a partir disso, aumentando as tensões nesse microcosmo que escancara a Era da pós-verdade, entre outras crises europeias atuais.
Crítica
Para melhor compreender os filmes, é indicado situá-los em seus contextos históricos, políticos e sociais. A partir desses parâmetros podemos identificar de que modos e com quais intenções os objetos são apresentados e elaborados. Representante da Alemanha no Oscar 2024, A Sala dos Professores é fruto da Era da pós-verdade, da conjuntura presente em que os fatos objetivos têm menos relevância no discurso do que as crenças pessoais e os apelos emocionais utilizados para moldar opiniões. Se no cenário de anos atrás era comum os enredos resolvidos estritamente quando a justa verdade vinha à tona, é perceptível que de uns anos para cá o cinema tem reproduzido criticamente o relativismo atrelado à pós-verdade. Último vencedor do Festival de Cannes, Anatomia de uma Queda (2023) subverte traços do modelo do filme de tribunal para se adequar a esse agora. Ele não persegue a resolução cristalina, mas tenta mostrar que a verdade perdeu valor nessa conjuntura em que as versões, as manipulações e os ruídos revelam mais sobre as nossas sociedades do que o conforto de chegar a um denominador comum. A protagonista da vez é Carla Nowak (Leonie Benesch), professora de uma escola alemã sugada para um redemoinho de conspirações e desconfianças quando uma série de pequenos furtos começa a acontecer na instituição. Ela nos é apresentada como uma pessoa ética, correta.
Carla demonstra enorme desconforto ao presenciar a sugestão da direção da escola para que os alunos representantes de classe dedurem colegas que tenham ostentado mais dinheiro do que o normal nos círculos vedados aos professores. Do mesmo modo, tenta sempre ser justa com as pessoas ao redor, independentemente da posição ocupada nessa escola que o filme transforma num microcosmo da Europa em crise. Incentivadora dos bons alunos, compreensiva com os injustiçados, Carla se sente igualmente incomodada quando as desconfianças recaem sobre um filho de imigrantes árabes. Enquanto vai colocando a protagonista nos holofotes, criando uma dinâmica na qual ela se torna gradativamente o centro gravitacional e moral da história, o diretor Ilker Çatak pontua os relatos com a identificação de feridas ainda abertas na sociedade alemã. Isso é percebido na inclinação dos professores ao vigilantismo e à consequente punição como tentativa de reordenar um mundo aos pedaços. De vocação autoritária, a atitude dos docentes (e da própria direção da escola) causa extremo incômodo na protagonista que precisa se esforçar um bocado para continuar exercendo a sua atividade plenamente, ou seja, potencializando os excepcionais e ajudando os menos dedicados a corrigir a rota entortada por suas dificuldades. Ao tentar encontrar a verdade apaziguadora, Carla é jogada impiedosamente na cova dos leões.
É estimulante o modo como Ilker Çatak articula a tentativa de Carla de esclarecer os culpados e com isso dissipar a sensação permanente de suspeita na escola. Eticamente questionável, a colocação da câmera para gravar o eventual furto ao casaco deixado deliberadamente como isca desencadeia uma crise aparentemente irrefreável. Ao identificar parcialmente a pessoa culpada por meio da estampa de uma camiseta, mesmo consternada, ela confronta a secretária da escola cuja vestimenta bate com a da imagem. Primeiro, lhe dá a oportunidade de simplesmente devolver o dinheiro e não ser denunciada. Segundo, sente-se na obrigação de levar à questão à diretora – atender às normas é visto como imperativo na sociedade alemã. A partir disso, o caso se desdobra numa série de conflitos que englobam também os alunos naturalmente arrolados, sobretudo o menino filho da acusada que responde agressivamente ao sofrimento da mãe. Em A Sala dos Professores pouco importa se a secretária é culpada, se realmente ela furtou o dinheiro deixado propositalmente no casaco a fim de encerrar a questão. O mais relevante é exatamente esse turbilhão descontrolado de acusações trocadas, como num tiroteio às cegas em que os duelos são caracterizados por isto de apontar o dedo condenatório ao outro e “livrar o seu da reta”, como dizemos popularmente. É uma realidade na qual os ruins são sempre os demais.
Além dessa conexão umbilical com a nossa atualidade marcada pela pós-verdade, A Sala dos Professores carrega as cicatrizes de um país que entrou duas vezes em guerra contra boa parte do mundo no século 20. Há ecos do passado nefasto no fato de Carla ser filha de poloneses que migraram à Alemanha nos anos 1960 – podemos deduzir que eles foram filhos de perseguidos pelos nazistas? O histórico se choca ao longo da trama com outra questão contemporânea: a xenofobia. Dentro da situação inflamada por acusações alimentando a desconfiança geral, os imigrantes e/ou filhos de estrangeiros são geralmente alvos iniciais. Nessa celeuma, Carla nunca é observada como uma vítima desprovida de responsabilidade, mas enquanto alguém que segue tentando ser ética e responsável, mesmo tomando atitudes controversas sob pressão e vendo corpo docente e os alunos se voltarem contra ela. Relativamente didático a respeito da menção à sociedade da pós-verdade nesse microcosmo indicativo de uma realidade coletiva maior, İlker Çatak (cineasta nascido na Alemanha, filho de imigrantes turcos) insere no enredo a matéria do jornal escolar construída com base, justamente, no sensacionalismo e nos apelos emocionais que inviabilizam a investigação para se chegar à verdade. O saldo é um filme ciente do tempo presente, igualmente atento às heranças deixadas pelo passado e sem respostas sobre o futuro.
Filme visto durante o 25º Festival do Rio (2023)
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