Crítica


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Sinopse

Um homem e uma mulher estão em um restaurante situado nas montanhas libanesas. De repente, aviões de combate aparecem e, à distância, a guerra parece estar surgindo mais uma vez. Eles parem rumo à floresta gigantesca e vazia. Sem perceberem o caminho que estão tomando, seguem mata adentro.

Crítica

A história de The River (2021) pode ser lida como uma simples escapada. O homem (Ali Suliman) e a mulher (Yumna Marwan) estão sentados à mesa de um restaurante prestes a fechar as portas. Eles são os únicos ocupando alguma mesa, e serão os únicos seres humanos vistos ao longo do filme inteiro. Quando barulhos no céu indicam um possível bombardeio, enveredam-se floresta adentro, e a partir deste movimento adiante, sem ponto de chegada previsto, jamais voltam. É possível dizer que estejam perdidos, visto que desconhecem o lugar. No entanto, nunca demonstram qualquer receio ligado a esta pequena aventura íntima: eles continuam seguindo em frente, explorando aquilo que o amplo espaço tem a oferecer. No caminho, se separam e se reencontram, assim como havia sido o relacionamento de ambos até então. De qualquer modo, buscam o prazer de se perderem em meio à natureza: a deambulação constitui uma finalidade em si mesma. Há pouquíssimos diálogos ao longo de 100 minutos de projeção, e quando surgem, oferecem pequenos fragmentos de sentido (“O seu também?”, ela pergunta, apontando o celular dele e indicando que ambos estão sem sinal) ou ruminações poéticas (“Talvez sejamos mais do que um, existindo antes de existir”). As raras conversas tampouco buscam explicar ou conduzir os personagens a um rumo preciso.

A indicação por meio de ações e falas se torna desnecessária diante do banquete sonoro fornecido pelo diretor Ghassan Salhab. O drama está longe de um filme tedioso, pelo contrário: os protagonistas estão cercados por elementos misteriosos produzindo medo, fascinação e curiosidade. Os sons de aviões no céu e de bombardeios aludem a uma guerra no país. Ao redor, há cães raivosos, bodes presos às árvores, possíveis passos de pessoas (onde estariam?), trilha sonora sombria, respiração ofegante e alta, batimentos cardíacos. O complexo desenho de som de Rana Eid propõe uma respiração altíssima, ao passo que escutamos o ruído de uma caneta escrevendo no papel, uma pequena maçã atirada ao longe e a água em algum ponto longínquo aa floresta – o rio mencionado no título aparece somente nos vinte minutos finais. A dupla imerge num universo dinâmico e ambíguo, onde uma colina conduz a uma gruta, e então um campo aberto, e depois às ruínas. É fundamental que ambos estejam livres de compromissos, de horário para regressar, de familiares com quem encontrar no fim do dia. Eles partem com o despojamento de quem pode se perder. Face ao cenário que muitos autores utilizariam para o terror ou a ação, o cineasta senegalês constrói um parêntese da vida cotidiana. Separados da sociedade e da rotina urbana, revelam pensamentos íntimos, sonhos, e fazem sexo a céu aberto.

A atmosfera de Adão e Eva no Jardim do Éden é assumida pelo autor em chave autocrítica quando a mulher pega uma maçã podre nas mãos e sugere que “falta só a serpente”. De qualquer modo, a narrativa assume a caracterização de um espaço metafórico, sem nome nem posição geográfica, e propenso aos devaneios. Partindo de uma fotografia essencialmente realista, a banda sonora sugere um teor próximo do realismo fantástico, enquanto os efeitos visuais de névoas espessas abrem as portas à magia. Estamos no universo das fábulas e contos, do estilo que coloca Chapeuzinho Vermelho, João e Maria rumo ao desconhecido. A presença de animais (o cachorro raivoso em especial) contribui a esta impressão, assim como a ausência de nomes para os protagonistas. A mulher parece gritar “Hassan” ao companheiro em determinado momento, porém os letreiros finais evitam batizá-los. O modo como se afastam e, depois de inúmeras subidas e descidas, acabam se reencontrando, aponta para um cenário labiríntico, de disposição artificial e voluntariamente manipuladora, tanto em relação aos heróis quanto ao espectador. A natureza representa mais do que um protagonista autônomo e um cenário para a ambientação: ela se transforma em campo de jogo.

Visto que a câmera se encontra inteiramente focada nos rostos e corpos de seus dois atores, o trabalho de Ali Suliman e Yumna Marwan se revela indispensável à crença na proposta. Felizmente, ambos apresentam composições ricas em intenções e sentimentos. Filmes com pouco ou nenhum diálogo costumam incomodar quando os personagens precisam dizer algo para mover a narrativa, mas se calam pelo imperativo da mudez. Aqui, homem e mulher evitam a conversa porque realmente não têm mais nada a dizer um ao outro: o relacionamento está terminado e o almoço no restaurante provocou chances nulas de reatarem. A incomunicabilidade se converte em tema e finalidade, razão pela qual o desconforto de ambos, lado a lado, constitui matéria de conflito. Quando de fato precisam expressar algo, falam com uma naturalidade impressionante. Suliman e Marwan expressam a dúvida, a ternura e o desejo sexual em chave desafetada. Estes corpos em movimento contínuo encaram os sons de bombas, intrusos e animais com fascinante inconsequência: eles se preocupam apenas com a reação alheia e a possível reabertura ao romance. Mesmo imersos neste provável terreno de guerra, com um revólver preso à cintura, pensam somente em amar ou ser amado. Assim, a alusão ao ataque de desconhecidos indica o estado de espírito de ambos, ao invés de ações concretas com impacto narrativo. Paira a sensação de que acordarão num lugar distante, e este terá sido apenas um sonho – uma conveniência narrativa que, para a felicidade do espectador, jamais se concretiza.

The River aposta num cinema mais interessado em sensações do que em conflitos exteriorizados. Em alguns aspectos, relembra as propostas do iraniano Abbas Kiarostami, mergulhando seus personagens numa natureza vasta para que tenham tempo e oportunidade de refletirem sobre si próprios. Além dos enquadramentos cuidadosamente pensados, elabora um universo complexo fora de quadro, seja pelos sons acima, abaixo e ao lado dos protagonistas, seja pelas mudanças de luz, pelos olhares admirando algum elemento no horizonte, pelos cartuchos de tiro sem a cena do tiroteio em si. A vasta natureza representa a paisagem interna para o projeto intimista, denso em termos de construção de luz, som e montagem, mas simples em configuração narrativa – em linhas gerais, temos uma mulher e um homem andando numa floresta durante a integralidade da trama. O diretor comprova a força da linguagem cinematográfica num exercício purista de direção e de estética. Ao invés de ilustrar cenas descritas no roteiro, desenvolve sua linguagem a partir das locações. Este roteiro poderia dar origem a resultados radicalmente diferentes, caso chegasse às mãos de outros criadores. A combinação singular de imagem e som torna a experiência única: quantos filmes mostram um casal caminhando pacificamente enquanto escutamos o som altíssimo de sua respiração, junto aos batimentos cardíacos, à trilha sonora imponente, às linguiças fritando na cozinha do restaurante e aos aviões percorrendo os céus? Salhab condensa a aventura de guerra situada nos ares, na água e na terra no interior de uma tarde de passeio entre dois amantes.

Filme visto online no Festival Internacional de Locarno, em agosto de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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