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Sinopse

Durante a Segunda Guerra Mundial, um garoto judeu recebe os cuidados da avó. Quando ela morre, ele fica sozinho no mundo, e não tem alternativas de sobrevivência exceto explorar as estradas do leste europeu, tomadas pela batalha. Aos poucos, o menino descobre a perversidade de que os seres humanos são capazes em tempos de guerra.

Crítica

Se optasse pelo caminho realista, O Pássaro Pintado (2019) seria um filme insuportável. Afinal, há cenas de tortura, pedofilia, incesto, zoofilia, estupro, linchamento, sequestro, tráfico humano e inúmeros maus-tratos a animais. Personagens são enterrados vivos, açoitados, têm seus globos oculares arrancados a colheradas, o couro cabeludo dilacerado por pássaros, as costas marcadas por chicotadas, o corpo devorado por ratos. Os animais são arrastados, queimados vivos, bicados até a morte, esmagados, abandonados, torturados. Não se passa mais de cinco minutos sem que uma cena chocante irrompa na tela. Muitas destas brutalidades são infligidas ao protagonista, um garotinho judeu caminhando sem rumo em meio à Segunda Guerra Mundial. Sem nome (pelo menos, até a cena final), sem psicologia nem passado, ele se torna um corpo que atravessa a guerra. Quando a avó, responsável pelos cuidados do menino, morre dentro de casa, o protagonista fica sozinho no mundo. A solução consiste em enfrentar a estrada, encontrar os nazistas, os russos, os religiosos, os soldados, as casas de família e diversos inimigos. O menino se torna não apenas o alvo de tamanha hostilidade, e sim um observador atento da Segunda Guerra Mundial.

Ao invés de se concentrar nos campos de batalha, o diretor Václav Marhoul privilegia a maneira como o conflito armado afeta as famílias, as relações amorosas, e mesmo a noção de humanidade entre aqueles que ficam em suas casas. Felizmente, o duro e extenso drama se constrói enquanto fábula. Primeiro, a montagem faz com que as cenas se articulem entre longos saltos temporais. A narrativa é entrecortada por capítulos, batizados segundo os sucessivos adultos que acolhem o garotinho. Em cada história, ele se confronta aos hóspedes ou sequestradores, sofre alguma forma de abuso, e depois parte. As cenas poderiam ser organizadas em outra ordem sem prejuízo à compreensão da trama, pois não há relações estritas de causa e consequência. O menino enfrenta provações autônomas: após ser açoitado, ele reaparece no dia seguinte sem dores aparentes no corpo. Depois de ser enterrado vivo e bicado na cabeça por aves que lhe arrancam o sangue, o garoto está intacto no outro dia. Assim, a noção de naturalismo e de sobreposição das dores se perde. As cenas são intercambiáveis, fantasiosas, como num pesadelo. Muitas sequências não possuem justificativa narrativa, apenas simbólica, a exemplo do enterramento e da passagem sobre o pássaro pintado que dá nome ao filme.

Segundo, a estética se afasta tanto do registro cru da realidade quanto da imersão na miséria por meio do espetáculo. O cineasta e o diretor de fotografia Vladimír Smutný criam um cenário profundamente estilizado, e ao mesmo tempo elegante e frio. O preto e branco recebe trabalho ostensivo: cada plano se assemelha ao registro de um ensaio fotográfico em still, com sombras perfeitamente controladas, luz filtrada e orientada, discretos movimentos de câmera em direção aos corpos e grandes plano gerais valorizando a natureza. Estamos diante de um registro polido como em O Cavalo de Turim (2011) e Guerra Fria (2018), onde o embelezamento excessivo não glamuriza o sofrimento em moldes hollywoodianos, mas produz um distanciamento em relação ao contexto. Não se busca mimetizar ou apreender o real, e sim construir uma analogia da realidade. Nem as imagens, nem a narrativa se desenvolve de maneira naturalista: o garoto jamais sobreviveria após tantas violências físicas e psicológicas. No entanto, O Pássaro Pintado constitui uma parábola dos horrores da guerra reproduzidos pela combinação de sexo e morte, aplicada ao jovem judeu anônimo. Há bruxas, feiticeiras, “loucos do vilarejo” e animais mágicos o suficiente para aproximar o resultado de uma fábula tradicional.

“Esta violência é desnecessária”, argumentaram diversos críticos desde o Festival de Veneza 2019, onde foi exibido pela primeira vez. “O diretor passa dos limites”, alegaram outros, em raciocínio análogo. Ora, o que seria realmente necessário dentro de uma trama? Onde se traça o limite entre o aceitável e o inaceitável numa guerra? A partir de qual ponto a trama sobre o garoto torturado, afamado, estuprado e abandonado deixa de ser tolerável? O projeto suscita questionamentos importantes acerca de nossa relação com imagens de brutalidade. Partindo da cena inicial, quando o garoto é espancado, tudo o que se segue não seria excessivo? A guerra passa a ser lida enquanto selvageria simbólica, na qual os homens são constantemente associados ao comportamento animal. Além disso, Marhoul demonstra precauções importantes com estas cenas: embora sugira hostilidades à exaustão, ele raramente as filma enquanto tais. O estupro é sugerido pela imagem de um adulto abotoando as calças, o corpo de um adulto devorado por ratos é sugerido pelo som em off, os maus-tratos ao pássaro pintado são vistos à distância, impedindo a percepção de detalhes. O cineasta explora a riqueza da linguagem cinematográfica para solicitar ao espectador que projete seu próprio imaginário de abusos. Discute-se a violência de modo obsessivo, porém sem defendê-la nem romantizá-la.

“Você tem sorte”, dispara uma das mulheres que abriga o protagonista, antes de maltratá-lo como todos os outros. As três horas de duração seriam repetitivas caso o filme não apresentasse uma guinada importante a exatos dois terços da narrativa. Neste instante, as cenas de campo de batalha enfim aparecem no filme, e o garoto passa a reproduzir as agressões que tanto sofreu. Cerca de duas horas de sobrevivência servem como preparação à guerra propriamente dita: quando vemos Mitka (Barry Pepper) pegando em armas, e o próprio menino se armando para a defesa, compreendemos contra o quê estão lutando. Muitos filmes de guerra se limitam à constatação dos fatos: dois lados estão brigando, os homens atiram uns nos outros. Marhoul poderia destrinchar o aspecto político da Segunda Guerra Mundial, no entanto, pelo fato de adotar o ponto de vista de uma criança, não fornece análises ideológicas que o menino seria incapaz de elaborar por conta própria. O cineasta privilegia o antro representativo da perda de valores humanos, num mundo cíclico remetendo às parábolas bíblicas e ao Inferno de Dante. O filme não constitui uma experiência agradável, longe disso. No entanto, ele jamais solicita nossas lágrimas ou nossa piedade: a batalha não se posiciona em nível moral. O menino judeu é comparado aos pássaros devorados pelos animais de sua espécie, os cavalos arrastados por outros cavalos, os ratos devorando a si mesmos, os gatos atacando outros gatos por fome. O Pássaro Pintado se torna uma potente parábola do Holocausto sem recorrer às imagens referenciais de campos de concentração e outros instrumentos históricos do genocídio. A experiência do tempo dilatado, neste caso, serve para tornar a trama cíclica, fugindo à linearidade típica das narrativas históricas, enquanto nos questiona sobre a nossa própria apatia diante dos abusos humanos. A brutalidade não se torna “desnecessária” ou “violenta demais” a partir de algum momento específico: ela é inaceitável desde o primeiro minuto. A questão é exatamente esta.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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