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Sinopse

Luís Rovisco, sexagenário divorciado, espera interromper rapidamente suas funções de diretor comercial. Espera na maior parte das vezes ao volante, cantando sobre o que acontece à sua frente. De resposta pronta e sorriso fácil, é senhor de uma bagagem que o permite escapar de forma elegante às armadilhas que a tecnologia, os colegas e um misterioso patrão ausente parecem lhe impor pelo caminho.

Crítica

Desde as primeiras imagens, todos os aspectos deste filme português produzem estranhamento, seja a granulação da película 16mm, a tela em formato 1.78:1, de bordas arredondas, e a presença de um personagem que espera longamente a chega de alguém, sem motivo aparente. Além disso, Luís Rovisco (Miguel Lobo Antunes) começa a entoar uma canção singela sobre suas dores e amores, combinando a música instrumental do rádio com uma imponente trilha sonora extradiegética que se adiciona à lamentação deste funcionário idoso de uma empresa de equipamentos de vigilância. Sim, o drama singelo e melancólico se transforma num musical comandado por um senhor de canto naturalista, sem dotes vocais particulares.

A introdução do gênero musical se faz particularmente interessante devido ao desenvolvimento promovido pelo diretor João Nicolau ao longo da narrativa. Partindo de solos dentro do carro, as canções adquirem aos poucos novos contornos, saindo para as ruas, envolvendo novos personagens, cenários teatrais, banda ao vivo e mesmo uma excelente conjunção de vozes entre Luís, Lucinda (Luísa Cruz) e o narrador em off, creditado como “voz impossível de homem” (Bruno Lourenço). Por mais improváveis que sejam estes momentos, eles rompem com a impressão de espetáculo e o efeito de magia associadas aos musicais, privilegiando o naturalismo. Ou seja, ao invés de aumentar o tom durante as performances, o cineasta torna-as ainda mais minimalistas, próximas do amador.

O musical, gênero que exige o preparo e o controle por excelência, conecta-se então com o improviso, num contorcionismo fascinante proposto pelo diretor. Em meio a tantas comédias que se limitam a brincar com a narrativa e os personagens, Nicolau se diverte essencialmente com a linguagem cinematográfica, fragmentando diálogos através do tempo (o personagem inicia uma frase que só se completa no dia seguinte, por exemplo), propondo rebuscados planos-sequências para ações ordinárias (o passeio pelos corredores do hotel) e um telefone invisível cujo som é disparado sem qualquer contato com o aparelho, além do encontro com o patrão invisível diante de um fundo teatral infinito. Nicolau complica cenas de aparência simples, e simplifica outras que poderiam ser um tanto complexas. Estas pequenas subversões, espécie de brincadeiras inconsequentes, nunca chamam atenção excessiva a si mesmas, compondo um painel de pequenos ruídos que, unificados, provocam uma sensação de desconforto análoga àquela sentida pelo protagonista.

Apesar de todos os seus tiques e gags (o sanduíche, o joelho, o gato, os encontros com a jovem funcionária do hotel), Technoboss nunca deixa de efetuar um retrato carinhoso deste homem que se recusa a aceitar a ideia de que seus conhecimentos sobre a tecnologia moderna são limitados demais para trabalhar, justamente, numa empresa de tecnologia. Ele possui uma melancolia evidente no olhar e na fala, algo que o roteiro constrói gradativamente na relação com a ex-esposa, com o filho mais velho, com o gato, e principalmente no amor platônico por uma funcionária do hotel. Luís, homem ao mesmo tempo inocente e malicioso, romântico e ranzinza, é muitíssimo bem interpretado por Miguel Lobo Antunes, jurista aposentado que nunca havia atuado antes. Pelo trabalho excelente de voz, de postura corporal e na transição de tons (do cômico ao trágico), ele revela não apenas o talento nato do ator não-profissional, como também a aptidão de João Nicolau no trato com atores.

O filme se conclui como uma jornada de aparência inocente, pela multiplicação de recursos lúdicos e pelas canções que rimam “andorinhas” e “flores amarelinhas”. Ora, existe um sarcasmo corrosivo por trás deste embate de gerações e, principalmente, pelo uso de linguagem cinematográfica. Em pleno 2019, Nicolau utiliza a textura da película antiga, num gênero pouco explorado, para citar a solidão dos nossos tempos e a automatização do trabalho produzindo desemprego – vide o belo dueto entre Luís e a máquina do pedágio. O diretor enxerga nestes procedimentos incomuns uma representação do absurdo das relações contemporâneas, produzindo um distanciamento crítico pela constante sensação de incômodo fornecida ao público. Nem todos os projetos conseguem combinar política e humor com a terna ousadia de Technoboss.

Filme visto na 73ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2019.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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