Crítica


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Sinopse

Bassley é um jogador de futebol senegalês contratado por uma equipe no Vietnã. No entanto, devido a uma lesão, o contrato é rompido. Precisando enviar dinheiro à família, incluindo o filho pequeno, o atleta passa a trabalhar como cabeleireiro, massagista, cozinheiro e entregador nas favelas de Ho Chi Minh. Um dia, encontra quatro mulheres que vivem isoladas, e passa a dividir o espaço com elas. Juntos, descobrem a solidão, o sexo e o trabalho forçado.

Crítica

Os personagens deste filme são descritos inicialmente como corpos em movimento. A narrativa demora vinte minutos até introduzir o primeiro diálogo, e as conversas permanecem raríssimas no decorrer da trama. Bassley (Olegunleko Ezekiel Gbenga) e as quatro mulheres vietnamitas com que vive se definem pela força de trabalho: eles costuram, cozinham, lavam, carregam produtos, cortam cabelo, entregam produtos, fazem massagem, costuram balões de ar, lavam porcos, lavam verduras e lavam uns aos outros. Os espaços deste galpão se fundem: a comida é limpa sobre o chão, ao passo que alguém toma banho e escova os dentes ao lado, e outra defeca no banheiro turco no canto. Às vezes alguém prepara os vegetais, completamente nu, enquanto um segundo entra no ofurô com um porco, e outros dois fazem sexo sobre o chão, no meio da passagem. Não há conversa, gemidos, expressão de satisfação ou cansaço. Estas figuras se movem como máquinas, cumprindo uma infinidade de tarefas diárias sobre as quais possuem pouca ingerência. O que resta a um corpo quando lhe retiramos a subjetividade?

Taste (2021) constitui uma obra de estranhezas. Por um lado, o jovem cineasta Le Bao opera na chave do realismo político, aproximando as favelas de Ho Chi Minh, no Vietnã, com a miséria no Senegal. Bassley e as quatro mulheres se unem pelas trajetórias de exploração, que jamais os convertem em vítimas sofredoras: eles desempenham as tarefas com vigor incontestável, rendendo-se ao imperativo da sobrevivência. Diante das dificuldades, fazem o que precisam fazer – os desejos e ambição para o futuro ficam reservados ao segundo plano. Mesmo assim, o roteiro insiste em revelar minúsculos traços que sugerem diferenças de temperamento dentro do grupo, além de um sentimento de saudade e inadequação por parte do estrangeiro. O cineasta toma as precauções para que seu projeto denuncie a desumanização sem desumanizar os personagens por si próprio, nem manifestar qualquer forma de desprezo por eles. Pelo contrário, nota-se a ternura do diretor por este senso de coletividade silencioso e funcional. Certos momentos de leveza, envolvendo uma motocicleta e o porco dentro de casa, acenam à possibilidade de descontração.

Por outro lado, a curiosa casa onde vivem os personagens remete ao palco de filme de terror, ou a um cenário teatral em estilo expressionista. Cortados do resto do mundo (os protagonistas interagem quase sempre entre si), eles circulam por amplos espaços escuros e sem janelas, cujas paredes descascadas contrastam com o asseio constante do grupo. Há pouquíssimos móveis dentro desta arquitetura surrealista, próxima aos quadros de Escher. O espectador é conduzido por um labirinto tão suntuoso, em termos de espaço, quanto depredado. As portas arredondadas separam cômodos indistintos, as escadas intermináveis levam a pontos desconhecidos. Os personagens sobem e descem, entram e saem, sem sabermos de onde vêm, ou para onde vão. Apesar da amplitude do caixote, eles se espremem em camas de solteiro, ou dormem no chão vazio. A casa consegue ser ao mesmo tempo aconchegante (os personagens se sentem muito confortáveis) e inóspita, porque análoga a um porão abandonado. Para a nossa surpresa, o cenário-personagem (seria criado em estúdio?) possui uma luz extremamente cuidadosa, para cada um dos cômodos e escadas. Há frestas inesperadas vindas do teto e das laterais, numa configuração tão improvável quanto deslumbrante da luz. Quanto tempo Bassley passa ali dentro? Quando começam os dias ou terminam as noites? Impossível saber. Tempo e espaço estão irremediavelmente distorcidos.

Assim, na fina conjunção entre o real e o fantástico, Le Bao orquestra sua crônica sonhada das relações entre os indivíduos, a comida e o trabalho. Antropólogos devem se deliciar com esta obra, capaz de fornecer leituras ricas (a partir de O Cru e o Cozido, de Lévi-Strauss, por exemplo). Os atores são menos condicionados a atuarem, no sentido clássico do termo, do que posarem, ou efetuarem performances para o enquadramento e a luz. Eles se tornam corpos disponíveis, sem vaidades nem prejulgamentos. As expressões são mínimas, visto que a estética se encarrega de transmitir sentimentos e sensações por si própria. Aos poucos, o corpo se assemelha à comida e aos animais, pela natureza orgânica e perecível – não por acaso, o humano cede espaço ao rato e à comida no final. Enquanto compõem uma comunidade autossuficiente, os cinco protagonistas evocam o momento de crise da civilização como a conhecemos. Seria possível analisar este projeto à luz da pandemia de Covid-19 e do isolamento social, voltada ao retrato desafetado das classes operárias. Neste filme, a casa representa um lugar sem instituições nem regras morais, sem julgamentos nem vigilância – um espaço onde reinam, ironicamente, a clausura e a liberdade.

Taste corre o risco de colocar a estética acima do humano. Cada enquadramento, iluminação ou movimentação é coreografado de forma tão rígida que o projeto vietnamita-singapuriano-francês-tailandês-alemão-taiwanês ameaça soterrar os seus personagens sob tamanho preciosismo. No entanto, o cineasta evita esta armadilha ao focar sua câmera na vivência humana da primeira à última cena. Ele não carrega mensagens prontas a respeito da crise econômica e social, nem explora a habilidade técnica da equipe para erguer um espetáculo da miséria. O filme de imagens grandiosas permanece intimista, melancólico, atento às manifestações ínfimas dos corpos nus. Bao atinge a proeza de combinar o controle extremo da estética, típico de cineastas exibicionistas, com leveza e liberdade narrativa – desconhecemos os rumos desta trama errante. Ao final, a casa-porão constitui um espaço psíquico, metáfora de acolhimento e rejeição, pertencimento e abandono. Os personagens são explorados, mas por quem? Eles produzem, mas para quem? Ao narrar a desumanização sem revelar as instâncias opressoras, Bao transforma a convivência dos protagonistas num teatro do absurdo.

Filme visto online no 71º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em março de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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