Crítica
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Crítica
Geralmente não é aconselhável escrever de maneira imediata sobre um filme que acabamos de assistir. É preferível deixar certas coisas decantarem minimamente, até porque nem sempre a percepção acalorada é a melhor. Nesses casos, é quase necessário permitir à sensibilidade que elabore os juízos vagarosamente, em segundo plano. No entanto, como não existem regras de ferro nessa atividade árdua de traduzir efeitos emocionais e percepções intelectuais em palavras e ideias, há também os casos em que o imediatismo melhora o diálogo entre o crítico e o filme. Este texto está sendo formulado no calor do momento, logo após a sessão do longa-metragem indicado ao Oscar – e que merece ser reconhecido para além da lembrança pelos membros da entidade existente a fim de celebrar Hollywood. Tár é um estudo minucioso de personagem, no qual estruturas sociais são escarafunchadas sem alarde por meio de uma direção sofisticada e de um roteiro não menos inteligente – ambos responsabilidade de Todd Field. A protagonista é Lydia Tár (Cate Blanchett), uma sumidade quando o assunto é composição/regência. Firme em suas manifestações pessoais e artísticas, ela é uma personagem profundamente interessante por sua complexidade. Méritos do trabalho brilhante da intérprete, por certo, mas também do respaldo do enredo gradativamente convidativo a tópicos que interseccionam público e privado.
Um bom exemplo para compreender a exímia habilidade do roteiro de Tár está na forma como o realizador insere na trama um reles personagem secundário. Em determinada cena, Lydia fala coloquialmente acerca de suas impressões sobre o ausente Sebastian (Allan Corduner), o seu regente assistente numa orquestra berlinense. Nessa conversa que parece banal, ela menciona tudo o que não gosta nesse homem dado a “certos hábitos obsessivos de colecionismo”. Mais tarde, quando de fato somos apresentados a Sebastian, é praticamente impossível não o enxergarmos um pouco com os olhos de Lydia, sobretudo por conta do enquadramento fixo que enfatiza a mesa do homem cercada de souvenires por todos os lados. É um método brilhante de, ao mesmo tempo, nos conectar com o prisma da protagonista e tornar menos meramente ilustrativa a entrada desse coadjuvante em cena. Também podemos dizer que com isso (a estratégia é repetida de jeitos variados ao longo do filme) Todd Field nos propõe uma reflexão sobre perspectivas e autoridades. Será possível ter uma ideia autônoma sobre Sebastian depois que a maestro e o cineasta se mancomunam para o percebermos de maneira específica? Com frequência os grandes filmes trazem esses pequenos enigmas disfarçados em suas entrelinhas. Também é atributo das obras que fogem à regra da mediocridade o espaço para o espectador.
E entendemos esse espaço ao espectador a partir das brechas de Tár abre para os assuntos não serem esgotados ou vagamente encarados. Dessa forma, a clara manipulação que Todd Field faz da nossa percepção em alguns momentos é menos fruto de uma imposição, mais de uma provocação corrosiva. Ao exemplificar nossa suscetibilidade, ele acende um importante alerta. É como se um técnico em segurança arrombasse nossa casa para provar que ela é vulnerável. E isso se repete no modo engenhoso como o roteiro constrói ideias a respeito do mentor de Lydia. Inicialmente não nominado, ele ganha inúmeros contornos na segunda vez em que aparece, ao justamente ser chamado por um nome que ouvimos antes em outro contexto. Novamente, é uma artimanha excepcional essa a de embolar os testemunhos e os julgamentos mediados pelas percepções alheias. Até que ponto específico somos vulneráveis como espectadores, mesmo relativamente conscientes da nossa passividade? Além desse questionamento pertinente, a artesania está a serviço de uma trama que se comunica em vários sentidos com a atualidade. Lydia discursa lindamente sobre a pobreza de restringir a obra artística aos aspectos identitários e/ou comportamentais do seu autor. Aí que entra a crítica à cultura do cancelamento. Lydia é tão eloquente que fica difícil discordar. Porém, são mantidas brechas a dúvidas e relativizações.
Tár costura ponderações sobre abuso, elitismo cultural, poder do esforço, ética/antiética e a elevação da arte. Nesse caminho, não distingue mocinhos e vilões, tomando o cuidado de rechaçar o jogo fácil da atribuição de responsabilidades, evitando sentenciar as boas e as más condutas. As manipulações de Lydia são mais violentamente expressas no semblante de contrariedade de sua esposa vivida com Nina Hoss. A frustração decorrente das promessas veladas (outro aspecto da manipulação) é materializada nas milimétricas e indicativas sugestões fisionômicas da assistente interpretada por Noémie Merlant. Já a ternura reside no gesto de segurar o pé da filha para ela conseguir dormir. Por sua vez, a agressividade vinda da noção “fins justificam meios” mora na ameaça à criança que faz alguém sofrer por preconceito (resquícios do supremacismo nazista?). Já a aproximação da novata é ambígua, ora manifestação de desejo, ora alimento do exercício irresponsável de poder. A Lydia interpretada magistralmente por Cate Blanchett não cabe sem nuances nas caixinhas de vilã e mocinha, transitando entre as duas como provê a natureza misteriosa e obscura de sua humanidade. E essa ambivalência, ou bem melhor dizendo, a impossibilidade de resumir tudo em dualidades, é lindamente construída pela mise-en-scène de Todd Field, sobretudo, haja vista a excepcional utilização dos ambientes e de outras molduras para conter impulsos devastadores numa atmosfera enganosa de sobriedade.
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