Crítica


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Sinopse

Após vários anos juntos, um casal de jovens apaixonados começa a sentir o desgaste do tempo de relacionamento. Enquanto ele fica preso à rotina exaustiva como engenheiro de uma grande empresa, ela assume cada vez mais plantões no hospital onde trabalha como enfermeira. Aos poucos, começam a surgir novos interesses amorosos para os dois.

Crítica

Existe uma quantidade considerável de surpresas ao longo de Sweet & Sour (2021). Em se tratando de uma comédia romântica, gênero previsível por natureza – nestas obras, o público busca a garantia de que os amantes terminarão juntos, apesar dos percalços -, o filme oferece interessantes vias alternativas. No primeiro terço, o diretor Lee Kae-Byeok opera num registro próximo do pastelão, marcado pelo humor físico e pelos exageros assumidos em relação à doença do jovem internado. O romance com a enfermeira se introduz aos poucos, em tom análogo à fábula graças às atitudes improváveis dela. Para a nossa surpresa, o terço central mergulha no drama naturalista, repleto de silêncios melancólicos sobre a rotina do casal. O tempo desgasta qualquer forma de relacionamento, sugere o roteiro, desenhando a lenta separação entre eles. Ora, na reta final, uma reviravolta nos permite reler todas as interações vistas até então por um novo prisma. A montagem brincalhona, quem diria, tinha pregado algumas peças este tempo todo. Os três segmentos se dividem em títulos misteriosos, porém devidamente explicados adiante: “Tênis novos”, “Tênis velhos” e “Dois pares de tênis”.

No centro desta experiência voltada ao público médio se encontra uma crônica amarga dos relacionamentos nas grandes cidades. O título internacional, que talvez pudesse ser traduzido como “Doce e Azedo”, corresponde bem à percepção das sociedades urbanas no século XXI. Jang-hyuk (Jang Ki-Yong) passa dia e noite no imenso escritório de engenharia onde possui um cargo temporário. Ele precisa provar seu valor ao chefe, razão pela qual efetua as refeições em frente ao computador e às vezes dorme na empresa. Da-eun (Chae Soo-bin) desempenha a função de plantonista noturna num hospital. Anos depois, continua explorada e maltratada pelos superiores. O relacionamento entre ambos se desgasta graças a fatores sociais: eles se veem cada vez menos, estão exaustos quando se encontram, acabam esquecendo de eventos ou compromissos em casal. O cineasta dedica tempo considerável a mostrá-los presos no trânsito, onde fileiras extensas de empresários escovam os dentes e vestem as meias dentro dos carros, a caminho da empresa. A noção de uma multidão solitária, que trabalha muito em troca de pouco dinheiro e reconhecimento, ganha um retrato surpreendentemente realista para um romance popular.

Outro mérito considerável da empreitada se encontra no ritmo definido pela montagem. Sweet & Sour oferece uma quantidade impensável de saltos temporais e alternâncias entre personagens. Dias, semanas, meses e anos se sucedem sem atropelos, sublinhando os impactos emocionais nos jovens funcionários. As sequências no escritório de Jang-hyuk, ou pelos corredores do hospital de Da-eun se alternam em velocidade espantosa, porém capaz de respeitar os instantes de respiro. De certo modo, a trama possui a estrutura de um sonho, evoluindo através do ritmo alucinante, de aparência profundamente real, mas de lógica questionável a posteriori. Símbolos recorrentes como a aliança do casal, o ketchup derrubado pela colega de escritório, o macarron da feira e a lâmpada queimada poderiam se tornar simplórios, caso a montagem não atasse todos os fios soltos rumo à conclusão. Existe uma beleza discreta em obras dotadas de fortes ambições tanta no que diz respeito à comunicação com o público quanto no uso da linguagem cinematográfica. O autor evita piadas fáceis ou desvios absurdos: a guinada final corresponde um caminho que já estava presente na história, embora não tivéssemos nos atentado para ele. A ideia de “enxergar os fatos por outra perspectiva” adquire um significado literal nesta proposta.

Em virtude das alternâncias de focos e de tom, é possível que o resultado seja criticado por espectadores mais apegados a um registro do que aos demais. Durante pelo menos a metade da narrativa, o filme se posiciona junto ao personagem masculino, adotando seu ponto de vista e deixando a namorada em segundo plano. Ora, esta decisão será revertida adiante. Talvez a transformação moral de alguns coadjuvantes (em especial, a colega engenheira interpretada por Krystal Jung) ocorra de maneira abrupta, embora funcione dentro das regras do humor. De fato, o cineasta prioriza a dupla central, representando figuras verossímeis num mundo insano. O embate com a enfermeira-chefe maligna, os colegas de quarto malucos, os chefes inconstantes e a colega manipuladora resultam no senso de absurdo aplicado ao sistema, ao invés do casal. Diversas comédias investem no comportamento excêntrico de seus heróis e heroínas, em oposição ao mundo normal (vide as caretas de Leandro Hassum, os gritos de Paulo Gustavo/Dona Hermínia ou os tiques de Fábio Porchat nos equivalentes brasileiros). Ora, o projeto sul-coreano percorre o caminho inverno, na linha dos projetos independentes (os “indies”) norte-americanos. Neste caso, é o mundo do trabalho que está louco – Jang-hyuk e Da-eun lutam para manter a sanidade no interior deste mecanismo.

Em consequência, o projeto se encerra sem o final otimista proporcionado por conciliações mágicas, tão comuns em romances. A história começa no registro “doce” e se conclui no “azedo”, aprofundando-se no pesadelo ao invés de acordar e restaurar a norma. A direção demonstra carinho pelos dois lados do casal, inclusive em suas atitudes controversas – eliminando assim a possibilidade de maniqueísmo e moralismo. Os nomes centrais do elenco sustentam com facilidade as transições: Chae Soo-bin passa da “enfermeira excêntrica”, de atitudes incompreensíveis a priori, para uma mulher de atitudes prudentes até demais rumo às últimas cenas, enquanto Jang Ki-Yong efetua idas e vindas entre o namorado carinhoso e o parceiro machista. Na megalópole opressora de Seul, o sonho de todos os cidadãos converge à fuga. Jeju, ilha coreana repleta de praias paradisíacas, ilustra o desejo inalcançável, seja por falta de dinheiro ou de tempo (ou ambos). O diretor toma a precaução de jamais mostrar este lugar, deixando ao espectador que projete sua própria imagem de paraíso tropical. Jeju representa uma ilusão, um lugar onde nenhum personagem chega de fato – mesmo aqueles com passagens nas mãos estão infelizes, incompletos e hesitando em realizar o trajeto. “Não existe amor em São Paulo”, afirma o pessimista ditado paulistano. Este filme oferece uma reflexão semelhante: existe amor em Seul, porém com prazo de validade.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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