Crítica


7

Leitores


3 votos 8

Onde Assistir

Sinopse

Crítica

Desde o princípio, banalidade e fantasia se encontram neste projeto português. Por um lado, o viúvo Isaque leva uma rotina comum, comendo suas pequenas refeições em casa, frequentando o bar local, engraxando os sapatos. Por outro lado, corre uma fofoca na cidade: a esposa morta de Isaque estaria de volta, tendo sido vista pelas ruas da cidade agarrada nos braços de outro homem. As mulheres fofoqueiras, os comerciantes e vizinhos começam a investigar as reações de Isaque, em espera de alguma resposta intensa para apimentar a chatice do dia a dia. Ele quebraria a cara dos dois? Enfrentaria esta fantasma desaforada? Deixaria de frequentar o cemitério para colocar flores no túmulo da esposa?

20191028 surdina 1

Em Surdina, o aspecto sobrenatural convive com o naturalismo sem conflitos, nem qualquer forma e ruptura estética. Para representar o conservadorismo do vilarejo, o diretor Rodrigo Areias e o escritor Valter Hugo Mãe, em seu primeiro roteiro de longa-metragem para o cinema, abordam um contexto em que a racionalidade não importa: ninguém se questiona sobre a excepcionalidade do retorno dos mortos. O que move os corações da cidadezinha é a possibilidade de beijos, gritos e choros. Em paralelo, no fundo do quintal de Isaque, vive algum tipo de fera selvagem, presa e ocultada por grades, em representação da ira do homem idoso, prestes a explodir. Não é de se espantar que os dois caminhos se encontrem, de uma maneira ou outra, conjugando a fera invisível e a esposa invisível.

É curioso que o filme se construa entre a impressão de uma minúscula crônica de costumes e um projeto muito mais ambicioso. A direção de fotografia ilumina e enquadra impecavelmente o casarão de Isaque, assim como o jardim e o café da cidade. A captação e edição de som efetuam um trabalho impecável, combinando ruídos locais com uma melancólica trilha de violões dedilhados, enquanto a montagem toma o tempo da contemplação sem arrastar a duração das cenas, resultado num enxuto formato de menos de 80 minutos. Pode-se pensar nesta comédia dramática como a adaptação de um conto que nunca existiu, nos quais se percebe os traços típicos do grande Valter Hugo Mãe em frases como “A vida havia de ser sono e presunto”, entoada pelos amigos do viúvo. Mesmo a obsessão anal do autor está presente através dos diálogos, dos xingamentos à placa do carro em que se lê “cu”.

Assim, o despojamento jamais se converte em precariedade estética, e cada pequeno símbolo é ressignificado rumo à conclusão – especialmente o belo destino reservado à fera, em procedimento análogo ao “Bestiário” de Julio Cortázar. Areias aborda a questão do luto numa trajetória que parte da fantasia ao realismo, do absurdo à verossimilhança. Se a história desperta sorrisos inicialmente com a improbabilidade da fantasma adúltera, ela aos poucos se revela mais amarga e consequente (ou seja, as sugestões não constituem meras brincadeiras) conforme se investiga as dores de Isaque por trás da aparência carrancuda. No papel principal, António Durães compõe com precisão o tipo íntegro, buscando efetuar o luto em silêncio num lugar onde todos invadem a sua vida privada, para vigiá-lo e lhe dar ordens. Por isso, ele desenvolve um comportamento arisco, espécie de resignação de quem não pode fugir (nem da situação da morte, nem da cidadezinha onde vive).

20191028 surdina 2

Em alguns momentos, o humor de planos fixos e situações absurdas tratadas com banalidade remetem ao cinema de Aki Kaurismaki, especialmente as situações de O Porto (2011). Em comum, ambos guardam a aparência de uma pequena história cujas implicações graves são abordadas com sutileza, para não interferirem na placidez do conjunto. Surdina resolve seus conflitos sem explosões nem acertos de contas: ele apenas sugere resoluções metafóricas por meio de revelações simples, fornecidas apenas ao espectador, ao invés do olhar ávido das fofoqueiras da cidade. Areias e Valter Hugo Mãe trazem uma variação ao retrato do luto, transformando a dor da perda no confronto literal com o fantasma da pessoa amada, e a ira contida, na materialização da besta-fera alimentada diariamente e grunhindo noite adentro. Trata-se de recursos simples enquanto poesia e enquanto produção, e talvez por isso mesmo, compatíveis com a fluidez do pequeno conto português.

Filme visto na 43ª Mostra Internacional de São Paulo, em outubro de 2019.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
avatar

Últimos artigos deBruno Carmelo (Ver Tudo)

Grade crítica

CríticoNota
Bruno Carmelo
7
Leonardo Ribeiro
8
MÉDIA
7.5

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *