Crítica


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Sinopse

Uma voz não identificada busca o espectador. Ela está à procura de afeto, mas também tem alguns ensinamentos a trazer. Em geral, fala sobre corpo, imagem, vida e morte.

Crítica

“Oi. Sou eu. Que bom te ver aqui. Que bom que você encontrou o tempo de vir me experimentar”. “Olha como eu me movo. Nossas imagens estão se movendo. Nossos corpos estão se movendo”. “Estou muito feliz que esteja aqui comigo”. “Este é o meu sexto corpo. Meu sétimo corpo. Meu oitavo corpo”. “Sabe o que é isso? É um pedaço de mundo. É corpo”. “Me abraça, querido, não me deixa cair”. “Tudo começa e termina ao mesmo tempo”. “Eu sou o que você quiser que eu seja, e nada disso”. Frases como esta dominam a integralidade de Super Natural (2022), proferidas pela voz off de um narrador onipresente e incorpóreo. A voz, no caso, seria melhor descrita na forma de interferências magnéticas cujo significado se traduz nas legendas, embora distantes de qualquer língua identificável. Este estímulo clama por amor, cuidado, carinho, atenção. Ele também oferece afeto e proporciona lições sobre a melhor maneira de lidar com suas angústias. A voz robótica e terrivelmente humana representa o único fio condutor de um projeto experimental cujas sequências se dispersam alegremente, num fluxo alucinatório e próximo da aleatoriedade. Se existe alguma forma de coesão, ela se encontra na rígida condução via frases de efeito da entidade magnética que possui tanta vontade de ensinar quanto de aprender.

O curioso dispositivo leva a um jogo de adivinhações: quem seria esta protagonista? A quem se dirige? Caso o público compre o enigma e tente decifrá-lo, se frustrará diante da percepção que o diretor Jorge Jácome não visa apontar uma saída única. O narrador pode coincidir com o céu, os animais, as frutas, o ar, ou o avesso de todas essas coisas. Ou, como diria Raul Seixas, “Eu sou o tudo e o nada / Eu sou feito da terra / Do fogo, da água e do ar”. Quanto ao interlocutor, ele aparenta ser o espectador diretamente, ou talvez coincida com os poucos personagens humanos, e anônimos, que desfilam pela imagem. Jovens nadam no riacho e agarram boias em forma de jacaré. “Me abraça, querido, não me deixa cair”, suplica novamente o herói, o que talvez identifique o protagonista com a figura da boia. Adiante, dois animais aquáticos aparentam se abraçar, despertando nova frase a respeito do abraço. Neste caso, o som se originaria na natureza. Ora, a brincadeira de identificação soa tão infrutífera quanto atribuir formas de bichos às nuvens. Caso o cineasta quisesse definir as peças do tabuleiro, ele o faria. O longa-metragem demonstra um prazer juvenil em apagar as respostas, e então cozinhar esta experiência etérea em banho-maria, esticando-a sem necessariamente desenvolvê-la.

O teor das evocações em off também desperta curiosidade quanto à sua natureza. Às vezes, lembram um convite à meditação, em outros, um processo de mergulho na hipnose. Às vezes, remetem aos questionáveis procedimentos de autoajuda batizados de mindfulness e técnicas semelhantes. Na ausência de contexto, e na falta precisa de objetivos e métodos, os mantras soam terrivelmente retóricos, expressando-se pelo prazer de expressar; para ocupar o tempo, pelo prazer em implementar esta própria voz robótica. É improvável que o longa-metragem tenha algum grande ensinamento, ou conceito estético aprofundado, por trás de provocações tão lúdicas e simples. Sempre que possível, o aspecto mais grave se atenua diante de intervenções lúdicas: o letreiro “Big Bang” tem a primeira palavra cortada, sendo substituída por “Gang Bang”; e algumas palavras “escapam” dos letreiros para navegarem tela afora. Mesmo a insistente carga erótica (“Quero sentir dentro de você”, “Quero respirar junto com você”) tem sua potência atenuada pelo caráter farsesco do conjunto — é difícil levar a sério estes procedimentos de pós-produção com aparência de exercício universitário. Aliás, Super Natural aparenta ter nascido na pós-produção, quando se teria oferecido alguma forma de linearidade ao caos.

Um dos pontos de maior destaque provém da escolha do elenco. Os poucos personagens humanos em cena são indivíduos com Síndrome de Down, ou pessoas dotadas de alguma forma de deficiência física. Eles aparentam ter ampla liberdade de expressão diante das câmeras, apesar do prazer do autor em dispô-los numa banheira de hidromassagem, em partes específicas do enquadramento. O caráter inclusivo poderia representar um valor em si, pelo simples fato de ter incorporado estas pessoas ao filme. No entanto, cabe questionar o uso de suas identidades. Por um lado, a naturalidade como se apresentam carrega um aspecto positivo — nenhuma obra precisa problematizar o capacitismo e a deficiência, nem convertê-los em tema do discurso. Por outro lado, estas figuras seguem desprovidas de nome, de voz, de personalidade, de objetivos, de ponto de vista. Eles se resumem a corpos, ou ainda modelos fotográficos decorando as imagens. Em outras palavras, possuem função estética, ao invés de narrativa. Além disso, os videoclipes com duas garotas cantando, em luzes e figurinos kitsch, beira a paródia — o filme está muito próximo de ridicularizar os jovens que se oferecem com tamanha humildade e confiança ao cineasta. Existe uma responsabilidade inerente ao ato de ocupar o filme com diversas formas de deficiência: elas nunca podem ser ignoradas, diminuídas, nem transformadas em símbolo carnavalesco de exotismo.

Super Natural pode ser munido das melhores intenções, e acredita-se com sinceridade que possua algum intuito nobre por trás dos esqueletos digitais dançando num pátio, e dos homens cobertos de folhas a bordo de um teleférico. Pelo menos, é preferível acreditar que a suposta reflexão aprofundada não tenha chegado com clareza ao resultado, do que pressupor que jamais existiu qualquer intencionalidade desenvolvida por trás da obra. Pressupõe-se que o discurso tenha se perdido na multiplicidade de formas e jogos cênicos, ao invés de se resumir a uma comunicação vaidosa, que se inicia e se esgota na figura do autor. O cinema experimental possui a capacidade de fornecer sensações e estímulos preciosos, dentro de um escopo conceitual preciso (caso de Geographies of Solitude, 2022, também presente na Berlinale), mas pode confundir a liberdade de expressão com o direito de recusar a comunicação. Faz-se cinema, neste caso, pelo prazer de fazer, porque se pode fazer. Ora, não é porque se possa fazer de tudo, que se deva fazer qualquer coisa, diria o bom senso. Qualquer espécie de viagem sensorial pode ser oferecida ao público, contanto que venha acompanhada de chaves de leitura (que o espectador precisará empregar por si mesmo, claro). Sem uma forma rigorosa de condução, o cinema experimental entretém tão somente seus próprios criadores.

Filme visto no 72º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2022.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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