Crítica


8

Leitores


2 votos 8

Onde Assistir

Sinopse

Três amigas curdas vivendo na Alemanha decidem gravar um videoclipe caseiro usando hijabs. A pequena brincadeira gera reações diferentes na comunidade, e logo elas precisam enfrentar a fama inesperada.

Crítica

O diretor Ulrich Seidl está longe de abandonar os posicionamentos controversos que garantiram sua fama. Na função de produtor de Sonne (2022), ele apresenta um estudo incendiário da presença da religião islâmica na Alemanha, entre assimilação e comunitarismo. No centro da trama está um trio de amigas de origem curda, que decide gravar um vídeo caseiro de Losing My Religion, do R.E.M. Elas vestem hijabs, pela diversão de usarem uma “fantasia” diferente, e provocam reações distintas dos interlocutores, entre raiva e admiração. Teria sido fácil explorar um recurso utilizado à exaustão no cinema recente: o dispositivo do vídeo vazado (geralmente, de conteúdo erótico) que leva seus protagonistas à condenação, e às vezes, à morte. No entanto, a diretora Kurdwin Ayub prefere um caminho mais difuso: o pai de Yesmin fica encantado com a fama súbita da filha, enquanto a mãe a condena enquanto desrespeito à religião, e o irmão menor procura alternativas violentas e “masculinas” de conquistar a popularidade na Internet. A gravação não destruirá a heroína, mas a tornará escrava da própria imagem: graças ao sucesso desta brincadeira em casa, as amigas serão convidadas (ou intimadas) a cantar em programas de televisão, festas, noites entre amigos. A tímida adolescente se converte numa figura midiática, e a partir do sucesso repentino, existirá para o resto do mundo apenas em versão digital.

Este seria um dos principais, e mais interessantes temas abordados no drama: a imposição de uma persona online, substituindo a existência real e física de seus referentes. Com nossos smartphones na mão, tornamo-nos todos “criadores de conteúdo”, diretores de nós mesmos. Agora, somos o autor e a obra simultaneamente, conforme tinham profetizado os precursores da arte pop décadas atrás. O roteiro está menos interessado no efeito imediato deste vídeo específico do que na necessidade de sustentar a fama e ampliá-la. Aos poucos, cada amiga reage de maneira distinta à condição de “artista sem arte”: Nati (Maya Wopienka) agarra a oportunidade com furor e medo de perdê-la; Bella (Law Wallner) sustenta as aparições como meio de escapismo e ferramenta para ser aceita na comunidade, e Yesmin (Melina Benli) passa a estranhar a si própria, quando incorporada aos mecanismos de fama instantânea. É interessante, e prudente, que a narrativa escolha esta última para o cargo de protagonista: afinal, ela representa o olhar distanciado, e potencialmente crítico, aos acontecimentos. Além disso, trata-se da única garota a utilizar o hijab diariamente, convertendo-se num ícone de resistência ou provocação, de acordo com cada ponto de vista. A menina perde autonomia de sua imagem, esforçando-se, de maneiras tortas e assertivas, para recuperá-la. Ela seria o Truman dos nossos tempos, procurando sair do reality show no qual foi inserida contra a sua vontade.

Ao invés de catastrofista ou alarmante, Sonne investiga os múltiplos pontos de vista acesos pela pequena faísca identitária. O drama revela-se competente na tarefa de desenvolver a psicologia de pelo menos dez personagens importantes, dotados de maneiras de falar e se portar específicas. Ayub possui um talento notável para dirigir atores de modo a deixá-los confortáveis em conversas de aparência improvisada. Gírias, repetições e bordões pop inundam os diálogos cômicos, garantindo um retrato palpável e verossímil da juventude. Yesmin nunca será reduzida a um estudo de caso, soterrada pelo peso da questão abordada: o filme segue firme a cartilha do drama de personagens, atribuindo à garota questões paralelas a resolver, seja na escola, com o irmão, com sua sexualidade e com os traumas dos pais. Para cada instante violento (os vômitos em plano de detalhe, a briga com os garotos curdos na lanchonete), há outros afetuosos (a confissão da mãe, os estudos com o irmão, a cumplicidade no comportamento vaidoso do pai) para equilibrar o ponto de vista. A diretora possui carinho e empatia por estas meninas, cujo comportamento parece conhecer intimamente. Em consequência, oferece uma representação complexa da pluralidade religiosa na Europa, para além de questões constitucionais e históricas. O filme aborda um lugar de pertencimento, seja entre amigos curdos, entre colegas alemães, ou nos grupos islâmicos conservadores. Ao buscar o acolhimento do outro, Yesmin se esforça em definir a si mesma.

Em paralelo, o drama proporciona um belo estudo tragicômico de nossa relação tóxica com os telefones celulares e as mídias digitais. A imagem salta com habilidade entre o scope (um digital impecável, bem iluminado e enquadrado) às captações em vídeo caseiro, em janela 1 × 1.87, e ao formato vertical típico dos telefones celulares. Ayub encontra maneiras apropriadas de enquadrar cada estrutura, opondo umas às outras de modo a sublinhar suas diferenças. Ela também escancara o absurdo via repetição: Losing My Religion será cantada pelo menos seis vezes pelas garotas, passando da diversão à obrigação, à paródia, ao cansaço. O hino de libertação, numa língua que a maioria delas compreende mal, se transformará em obrigação, uma necessidade autoimposta de estarem presentes no meio virtual — afinal, se desaparecerem das redes sociais, elas deixam de existir de fato para os colegas de escola (caso da viagem ao Iraque). Aqui, a imagem não tenta representar o real, preferindo substitui-lo de maneira cruel. Critica-se a nossa necessidade de filmar atos corriqueiros, e de produzir novos materiais para alimentar a admiração e inveja alheios — existimos para o olhar e validação de terceiros, muitos deles anônimos. Fugindo à armadilha de condenar estes registros e se render apenas à linguagem da Internet, a diretora busca compreender seu funcionamento em primeiro lugar, expondo ao espectador as diferenças de percepção entre a imagem “profissional”, artística, e a captação caseira. Há notável reflexão por trás do sucinto e complexo drama, que se encerra numa explosão abrupta — maneira de insinuar que não existem soluções otimistas, nem desfechos pessimistas possíveis, pois continuamos no meio deste funcionamento vicioso.

Filme visto no 72º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2022.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
avatar

Últimos artigos deBruno Carmelo (Ver Tudo)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *