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Sinopse

Lyz passa a integrar a célebre equipe de esqui do colégio de Bourg-Saint-Maurice aos 15 anos. Um antigo campeão assume o papel de seu treinador. No entanto, ela sente crescentemente o peso do sucesso.

Crítica

Pela apresentação inicial de Lyz (Noée Abita) em Slalom: Até o Limite, ela aparenta ser a típica protagonista de filmes esportivos: uma esquiadora determinada, porém considerada uma das mais fracas de sua equipe. Estranhamente, o treinador Fred (Jérémie Renier) presta atenção especial a ela, tanto para pressioná-la quanto para humilhá-la em público. A câmera tem olhos apenas para a garota de expressões fortes, ainda que tímida. Sabemos que a trajetória dela será excepcional: tudo indica um crescimento meteórico, a superação de obstáculos e o fortalecimento da autoestima desta heroína dotada de poucos amigos e relacionamento distante com os pais. Os lemas “não desista de seus sonhos”, “acredite em si mesmo”, “confie em seus talentos” acenam no horizonte, pelo menos na parte inicial. Não tarda até percebermos que a vida da adolescente de 15 anos enfrentará problemas maiores do que a conquista de um troféu. A trilha atmosférica se aproxima de um suspense. A fotografia aposta em flares hipnóticos, além de planos abertos reforçando a solidão de Lyz em meio à neve. O treinador coloca a mão na cintura da garota (com direito a plano de detalhe na mão). Aos poucos, a cineasta Charlène Favier nos prepara para a queda, ao invés da ascensão.

Slalom: Até o Limite torna-se uma história de negligências e abusos. Primeiro, pelo abandono dos pais, mais preocupados com suas vidas cotidianas, em conjunto com a instituição de ensino que ignora a condição de uma estudante menor de idade vivendo sozinha. Segundo, pela violência moral, psicológica e, por fim, física infligida a Lyz. Este se torna um filme sobre o estupro, em graus variados de intensidade. Por um lado, a narrativa já preparava o espectador para isso: a obsessão pelos rostos do adulto e da jovem, ignorando o mundo ao redor, confirmava a restrição do conflito aos dois personagens. Com a intrusão inaceitável deste homem – quantos treinadores admiram suas atletas menstruando pela primeira vez no vestiário? -, não há dúvidas quanto ao destino da esquiadora. O resultado se torna tão duro de presenciar por aquilo que mostra, quanto pelo que promete mostrar, insistentemente, desde o princípio. Há duas fortes cenas de abuso sexual, porém as demais, antecedendo ou sucedendo aos atos, preparam ou ecoam a força dos mesmos. Trata-se de um retrato de asfixia a céu aberto, um afogamento ao ar livre. A menina não tem a quem recorrer quando os adultos a ignoram ou se aproveitam da ausência de supervisão.

O tema carrega potência social evidente, aumentada por diversos fatores: a idade da garota, a pressão para que obtenha bons resultados no esporte, o silêncio compreensível dela, o fato de termos uma diretora mulher (cuja história de vida se aproxima daquela de Lyz), e sobretudo pela posição do público. Tornamo-nos espectadores privilegiados de uma violência impensável: além Lyz, Fred e nós mesmos, ninguém mais presencia as interações entre ambos. Não nos tornamos voyeurs, espiando à distância, e sim observadores em proximidade perturbadora dos atos: primeiro, dentro do carro onde ocorre um abuso, e em seguida, a poucos centímetros dos corpos e da penetração. Em virtude da seriedade do tema, Favier faz questão de reforçar a crueldade, traduzida na duração interminável dos ataques. Não há ambiguidades quanto aos fatos (inexiste a possibilidade de interpretarmos as sequências como algo diferente do estupro), apesar da complexa gama de sentimentos de ambos. O resultado é tão bem filmado quanto literal demais: sempre haverá um questionamento moral quanto à decisão de filmar a violência violentamente. O espectador precisa se sentir agredido para compreender a reação da personagem? A melhor estratégia para debater o tema seria via imersão (imagens próximas, ultrarrealismo, estupros longos) ao invés do distanciamento (metáforas, alusões, sugestões via som em off ou imagem fora de quadro)?

Por mais que se note o cuidado com a direção com os atores – percebe-se os enquadramentos calculados, além do talento da dupla principal para encarar estes momentos -, resta o sentimento de que a apreensão do real seja menos eficiente do que a representação do mesmo, quando se diz respeito a traumas e revoluções íntimas. Como reproduzir a dor, a humilhação, a indignação do estupro, ao invés do retratar o estupro em si? Talvez a abordagem pudesse ser mais ousada em termos narrativos. De qualquer modo, a cineasta demonstra controle notável de mise en scène, onde os recursos de linguagem conversam bem entre si: a precisão cirúrgica da direção de arte (uniformes impecáveis e idênticos, quartos vazios e impessoais, salas de reunião de cores frias) é reforçada pela direção de fotografia preciosista no retrato dos sentimentos (a profundidade de campo reduzida, a trilha sonora pontual e intensa), porém pragmática quando se trata das ações (as competições sem suspense nem emoção, os encontros inconsequentes com os pais). Favier aplica uma estética glacial a esta releitura da Chapeuzinho Vermelho – a garota literalmente se perde com um gorro vermelho, deparando-se com um lobo no caminho -, o que resulta em choques ainda mais desconfortáveis pela ausência de piedade ou distanciamento.

Slalom: Até o Limite também poderia ser questionado pelas passagens do tempo. Lyz se transforma com rapidez espantosa da pior atleta da equipe (uma “vergonha”, segundo Fred) à melhor esquiadora da Europa. A diretora da instituição passa de namorada gentil a companheira indignada em uma única cena. O concorrente masculino no esporte vira um carrasco, e depois um interesse sexual magnético, para enfim se tornar carrasco novamente. Por estar focado em momentos-choque e na relação tóxica entre duas pessoas, o roteiro não aborda com cuidado as progressões. Em consequência, o talento da menina para o esporte soa artificial: jamais vemos o rosto da competidora nas provas, tampouco os torturantes treinamentos físicos. Ela adquire habilidades magicamente, conforme as conveniências da narrativa. Embora não constitua um bom filme de esportes, há méritos dignos de nota. Lyz não se reduz à menina indefesa (ela navega entre a dependência afetiva e o desejo erótico pelo treinador), enquanto Fred escapa à descrição do predador em série (ele se surpreende com os próprios atos). A culpabilidade atribuída socialmente às vítimas de abusos está ausente deste olhar empático, posicionado junto à garota. A ótima conclusão proporciona um meio-termo entre as explosões da derrota e da vitória. Não é fácil tecer um caminho intermediário diante de polaridades acentuadas – adulto/criança, homem/mulher, agressor/agredida -, porém o desfecho encontra uma solução à altura da complexidade de seu tema.

Filme visto online no Festival Varilux de Cinema Francês, em novembro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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